
O filme Um lugar bem longe daqui, baseado no livro de Delia Owens, conta sobre a história de Catherine Danielle Clark, conhecida como Kya ou “menina do brejo”. A história começa em Barkley Cove, cidade da Carolina do Norte, quando o corpo de Chase é encontrado, um jovem cuja morte suspeita que pode ter sido acidental ou provocada por alguém, e quando essa dúvida surge, a cidade acusa Kya Clark. A famigerada “menina do brejo”, cuja vida é alvo de boatos e desumanização, de uma cidade que a vê como parte sobrenatural do brejo.
Para sua defesa no julgamento, surge um advogado disposto a escutar a sua história, e enquanto isso ocorre, ela é mantida presa. A protagonista começa a traçar para ele tudo o que aconteceu, já que se o caso for perdido a pena será de morte. Para entender sua história, é preciso voltar à infância. Kya foi criada em um pântano se locomovendo por barcos, era caçula de 4 irmãos, e vivia em um lar simples mas rodeado pela violência.
O pai agredia os filhos e a mãe, que foi embora. Aos poucos, foram-se todos os irmãos e, depois de um tempo, o pai a abandonou. Kya tinha 6 anos e estava sozinha longe de todos, sem frequentar a escola por sofrer bullying. Ela sobrevive sozinha, vendendo e pescando mariscos, recebendo apoio de Pulinho (que compra seus mariscos) e sua esposa Mabel, duas das únicas pessoas negras da cidade. Eles a tratam com respeito e compreensão, mas ela segue vivendo sozinha.
Anos passam, a protagonista cresce e ganha forte conexão com os animais, aprendendo sobre eles e os desenhando. Ela tem uma relação saudável com um jovem chamado Tate, mas ele a abandona para ir atrás dos próprios sonhos. Passam-se mais anos e Kya se envolve com Chase, um rapaz rico da cidade. A jovem não se sente mais sozinha e se abre, entra em contato com uma editora, produz livros com seus desenhos sobre espécies do pântano e compra sua propriedade para não a destruírem, tendo uma vida confortável.
Porém um dia ela descobre que Chase tem uma noiva, ela encerra o relacionamento na hora, mas o rapaz não aceita, e começa a ficar violento com Kya. Com o passar dos dias ele começa a persegui-lá, a agride e comete uma tentativa de estupro. Após perceber que a jovem não iria reatar, ele começa a destruir as coisas dela, cometendo invasões a sua propriedade, a deixando sempre em estado de alerta, com medo do próximo golpe que pode vir a qualquer momento, e assim a jovem fica sem ter para onde correr.
A vida de Kya foi marcada por uma grande negligência por parte da sociedade, que não fez questão de inclui-la, deixando uma criança solitária, primeiro presa em um lar com um homem violento que era seu pai, e depois completamente abandonada tendo que se “criar” sozinha. Essa mesma sociedade que a deixou ficou responsável por decidir se ela deveria permanecer viva ou morta em seu julgamento. Essas pessoas a classificaram como uma “bruxa”, atribuindo sua existência a algo sobrenatural por ela ter um modo de vida diferente. Em muitos momentos da trama Kya é comparada a seres místicos justamente por ter uma vida isolada, quando foi a própria sociedade que a colocou nesta posição.
A atribuição da condição da mulher que vive em modelos adversos aos convencionais como sendo “bruxa”e “feiticeira” nos relembra do livro de Silvia Federici “O ponto zero da revolução”, publicado em 2019. Na obra ela destrincha as relações de poder envolvendo gênero, reprodução, classe e distribuição de terras, dentro dessas relações são mostradas as formas como as mulheres eram enxergadas como sobrenaturais por viverem de forma isolada, ou por estarem fazendo práticas vistas como erradas, como a busca por conhecimento sobre a natureza.
Silvia fala sobre assuntos voltados principalmente para pessoas idosas, que eram as mais afetadas pela caça às bruxas, em seu capítulo chamado “Trabalho reprodutivo, trabalho das mulheres e relações de gênero na economia global”, por serem mulheres que não reproduziam ou tinham trabalhos dentro da sociedade. Entretanto, isso muito se relaciona ao modo como Kya é vista pela população ao seu redor: como alguém que só poderia ser uma “bruxa”, por viver isolada de formas que eles não compreendiam, embora sequer buscassem entender sobre, tanto que um dos únicos momentos em que tentam olhar de verdade para sua vivência, é quando surge um interesse pelas terras que lhe pertencem.
A violência do abandono é recorrente na trama, tendo impactos psicológicos, pela solidão e falta de acolhimento, com uma sociedade que não a auxilia em uma parte formadora da vida, a infância. Visto que a população não fornece uma rede de apoio para Kya, assim como não a concede recursos básicos, de forma que essa criança precisa aprender a sobreviver sozinha, sem ter energia elétrica, alimentos de qualidade ou até mesmo assistência médica. Para além do abandono, há também duas outras questões traumáticas que atravessam o filme: as ações violentas do pai contra a esposa e os filhos, envolta por agressões físicas e psicológicas, e a relação de Kya com Chase, que é permeada por manipulação, ameaças, violência e perseguição. A última é uma das mais visíveis em cena, já que são exibidas imagens explícitas do personagem Chase fazendo uso da violência de forma enfática contra Kya, agredindo, amedrontando, ofendendo, e não deixando ela viver a própria vida.
Por Lívia Labanca
Serviço:
Título original: Where the crawdads sing
Onde assistir: HBO Max
Classificação indicativa: 14 anos (A14)
Classificações da autora:
16 anos (A16)
Justificativa: grande quantidade de violências mostradas; não é indicado de forma alguma para ser assistido por crianças, por conter cenas explícitas.
Gatilhos: violência doméstica, abandono parental, tentativa de estupro e bullying.
