“Gloriosamente demente e vivo” (Entertainment Weekly, 2023); “Inteligente e obscenamente divertido” (Time Out, 2023); “Nos convida a aceitar a parte mais corajosa e mais ousada de nós mesmos” (Loud and Clear, 2023). Essas são algumas das classificações que Pobres Criaturas (Poor Things, no título original) recebeu nos últimos tempos. Com um pé na ficção e outro na realidade, a narrativa nos instiga a pensar nas diversas possibilidades da vida. O filme é de 2023, dirigido por Yorgos Lanthimos e protagonizado por grandes nomes como Emma Stone – que também é produtora da obra – , Mark Ruffalo e Willem Dafoe.
Ele conta a história de uma mulher que, ao tentar tirar sua própria vida, é ressuscitada por um médico e torna-se um “experimento” dele. Com isso, Bella Baxter (interpretada por Stone) fica num corpo de adulta com mente de criança, que se desenvolve a cada dia. Quando um dos alunos – Max McCandles (Ramy Youssef) – do Dr. Godwin Baxter (Dafoe) começa a participar do estudo, ele oferece a mão da moça, para que se casem – mas com uma condição: nunca sair de perto do “pai”.
Para os trâmites do contrato nupcial, Godwin contrata um advogado, Duncan Weedburn (Ruffalo), que, ao ler as condições, fica intrigado para saber quem é a donzela “de tamanho valor”. Ele invade o quarto de Bella e instantaneamente desperta seu desejo por ela, acreditando tratar-se de uma mulher inocente e curiosa. No meio da noite, Duncan retorna à residência Baxter e a convence a desbravar o mundo junto com ele em uma viagem para Lisboa – já que, até então, não era permitida sua saída da casa e nem o contato com ninguém além de Godwin e sua equipe.
Mesmo com os empecilhos, Bella consegue “se libertar” e realiza a viagem com o advogado, desde o início regada a experiências sexuais – que, até então, a personagem não havia vivenciado. Mas, se pensamos que ela ficaria apegada a ele como seu único parceiro, estamos enganadíssimas. A personagem desbrava esse novo mundo em todos os sentidos possíveis; seja na culinária, em bebidas alcóolicas, contato com novas pessoas ou sexo, ela está aberta a tudo e em desenvolvimento frequente.
Por ter a mente infantil, ela enxerga tudo com certa “crueza” e inocência, no sentido literal mesmo, não compreendendo ironias e complexidades da “sociedade polida”. E isso diz muito sobre a maneira como Bella enxerga e vivencia o sexo, não somente como uma experiência prazerosa, mas também como potente formadora da identidade dela, que toma boa parte da trama. Ela entende a prática sexual como parte essencial da vida, o que acaba trazendo uma subversão dos papéis de gênero, já que Duncan – que se diz livre, mulherengo e desapegado – começa a surtar ao vê-la tendo mais desejo por outras pessoas e não somente por ele.
Quando falo dessa troca de papéis, penso no capítulo “Pedagogias da Sexualidade”, do livro “O corpo educado: pedagogias da sexualidade” de Guacira Lopes Louro, quando a autora explica que as meninas são criadas com determinados dispositivos “femininos” e, por outro lado, os meninos criados com outros dispositivos. E, justamente, esses pontos criam visões e lugares diferentes que ocupamos no mundo, onde os homens são viris, “pegadores” e livres, já as mulheres são belas, recatadas e puritanas. Dessa maneira, o advogado fica nervoso ao observá-la tão desprendida, já que é acostumado com mulheres caindo aos seus pés. Há uma cena em que ela vai dançar conforme sua vontade, do seu jeito e Duncan levanta-se e tenta “domá-la” de alguma forma, para que dance apenas como ele espera. Contudo, ela se afasta das garras dele e mostra-se mais solta ainda.
O que Yorgos Lanthimos e Emma Stone nos trazem em Pobres Criaturas faz essa perspectiva dos gêneros balançar inteiramente, uma vez que Bella explora seu próprio corpo em uma casa de prostituição por escolha, por exemplo, ou quando se masturba todos os dias para gozar e “ser feliz” – como diz no filme. O longa tem essa presença erótica muito forte, com direito a nudez frontal e sexo explícito e foi, inclusive, criticado por isso muitas vezes, não somente por essas cenas, mas também por uma visão “masculina” representada pela personagem. No entanto, será que é mesmo uma visão masculina ou estamos incomodadas com a liberdade feminina que Bella Baxter possui?
A própria atriz comentou sobre a repercussão negativa, afirmando que “houve muitas perguntas sobre, ‘Oh, esse era um escritor homem e um diretor homem, o olhar masculino nessa situação – como se sente?’ Acho que isso tira minha agência aqui […] Porque eu sou a produtora. Essa é a história que queríamos contar da maneira que queríamos contar. Então parece um pouco estranho para mim meio que me tirarem disso, porque eu estava atuando como se eu não fosse uma voz importante ali também, ou se me dissessem o que fazer”. Ela fala também sobre a importância desempenhada pelo sexo na narrativa, que é fundamental para o crescimento da personagem e foi uma escolha.
Fico pensando, além disso, no lugar dela enquanto agente, já que Bella não foi apenas um objeto, mas sim uma agente ativa nas cenas, nas quais ela impunha suas vontades e perguntava quando sentia-se incomodada. E mais, em uma das cenas ela afirma que nós, seres humanos, somos um “banquete em mutação”, o que desperta ainda mais o desejo pelas descobertas, pela libertação e experimentação. Mesmo na fase em que ela fica na casa de prostituição, há uma investigação do que é bom e o que não é; dos diferentes homens que frequentam e, até mesmo, sexo entre mulheres.
Inclusive, nesse período em que ela está no bordel da Ms. Swiney (Kathryn Hunter), observamos traços marcantes da realidade doentia que vivemos, quando um pai leva seus dois filhos crianças/pré-adolescentes para ver “como transar” ou com a presença de um padre. Ademais, vemos os fetiches mais bizarros, na cena em que Bella é amarrada e suspensa e um homem se esfrega no corpo dela.
Outro ponto, levantado no debate da mostra Toda Nudez Será Castigada na última sexta (23/8), é sobre a estranheza que sentimos ao observar Bella em seu desenvolvimento. Talvez esse tenha sido um dos motivos para as críticas, pois, até o voyeurismo – quando uma pessoa tem prazer com a observação de outros transando – ficou meio sem lugar ao vê-la ativamente no mundo do sexo. Não é “convidativo” ou atraente, e pode ter deixado alguns espectadores (homens, rs) frustrados.
A trama se desenrola com a personagem retornando a Londres, sua casa, quando o dr. Godwin está doente, prestes a morrer, e ela vai se casar com Max McCandles. No momento do casamento, Duncan e Alfie Blessington – o “marido” do corpo original dela, ou seja, de quem era antes – aparecem para impedir a união e levá-la de volta para sua antiga vida, já que o médico a resgatou de uma tentativa de suicídio. Bella retorna para a vida de Victoria Blessington e percebe por que deixou aquele lugar, que era cruel e a violentava. Ela retorna para sua casa, inicia os estudos em medicina e permanece com aqueles que querem seu bem, como Toinette (Suzy Bemba), uma das amigas que fez, e Max.
No final das contas, ela tira lições essenciais sobre a vida e sobre sua própria liberdade, em que ela precisa poder escolher e não ser enganada. Sobre o debate de sexo, a pesquisadora e crítica de cinema Isabel Wittmann afirma em Pobres Criaturas, sexualidade e autonomia que “Toda essa discussão sobre Pobres Criaturas e sobre o comportamento e as ações de Bella Baxter parece vir do desconforto que a descoberta do corpo parece gerar. Parece ser sobre uma incapacidade de conceber que uma mulher (mesmo ficcional) deseje. Se a trama tem sexo, esse sexo é percebido como forçado (ou na frente ou atrás das câmaras) e ela necessariamente é objetificada. Não há espaço para a possibilidade de agência, autonomia e mesmo expressão criativa (diegéticas ou extra-campo). Mulher não pode querer. Liberdade e gozo feminino incomodam, ainda.”
Por fim, penso que não existe uma resposta “certa” ou única para a pergunta do título, pois precisamos considerar uma série de coisas até chegar a um determinado lugar. Porém, devemos estar atentas a representações positivas sobre gênero e atentas a suas problematizações. Que tenhamos a liberdade e o ímpeto pela descoberta de Bella Baxter e não voltemos para um período de repressão de quem somos e do nosso prazer.
Por Lia Junqueira
Serviço
Título original: Poor Things
Onde assistir: Disney +
Classificação indicativa: 18 anos (A18)
Classificação da autora: 18 anos (A18)
Justificativa: A narrativa é complexa de ser compreendida, com cenas de sexo e violência.
Gênero: Ficção Científica/Comédia.
