Crítica tem gênero e cor: por que atletas de alto desempenho ainda são criticadas pelo cabelo?

O cabelo para pessoas negras, principalmente para as mulheres, é um símbolo além da estética, que representa resistência, autoestima, autocuidado e identidade. Mas também é alvo de comentários racistas e preconceituosos. As olimpíadas atraem a atenção e os olhares de todo o mundo para as competições dos vários esportes. E, na internet, durante as disputas, tudo é comentado, do desempenho dos atletas, principalmente femininas, até as roupas, maquiagem e cabelos.

Simone Biles é a maior medalhista da história na ginástica artística feminina . A Olimpíada de Paris, em 2024, foi um momento importante para a carreira dela, pois representou seu retorno após desistir da competição em 2020, em Tóquio, devido a questões de saúde mental. Biles voltou a competir em 2023, no Mundial da Antuérpia, onde realizou um duplo mortal carpado no ar (chamado Yurchenko Double Pike) que depois foi nomeado de Biles II, pois ela foi a única que conseguiu completar o movimento. A ginasta tem mais quatro acrobacias com seu nome.

Enfim, Simone é uma grande atleta, mas ainda assim o que chama a atenção de algumas pessoas e é alvo de comentários na internet é sua aparência, principalmente o seu cabelo. Ele é alisado e quando a ginasta vai participar de competições usa penteados presos, como tranças, que geralmente são feitas por sua mãe, e coques. Esse assunto foi um tópico tratado na série documental O Retorno de Simone Biles (original: Simone Biles: Rising), da Netflix, que acompanha os bastidores e a preparação física e mental da atleta para Paris 2024. Biles desabafou que os comentários sobre seu cabelo, na Olimpíada de 2016, no Rio de Janeiro, a incomodaram. “Disseram que era um cabelo bagunçado, duro, fora do lugar. As pessoas ficam confortáveis comentando coisas e por isso eu silencio [nas redes sociais]. O padrão de beleza é demais.”

Em 2017, a ginasta usou seu perfil no X (antigo Twitter) para contestar os comentários que recebeu sobre seu cabelo após uma participação em um evento nos Estados Unidos. “Tenho uma pergunta para todos que comentam sobre meu cabelo quando pareço genuinamente feliz na foto. Você parece perfeito o tempo todo? Tudo está em perfeita ordem?”, escreveu. 

Neste ano, após ganhar sua quinta medalha de ouro nos Jogos Olímpicos, a atleta falou, de novo,  em suas redes sociais sobre as críticas ao seu penteado durante o evento de qualificação da ginástica artística feminina. Biles postou stories em seu Instagram com a mensagem: “Não venha falar comigo sobre meu cabelo. Ele foi arrumado, mas o ônibus não tem ar condicionado e está tipo 90000 graus”, escreveu a ginasta. “Da próxima vez que você quiser comentar sobre o cabelo de uma garota negra, simplesmente não comente.” 

Reprodução/ Instagram/ @simonebiles.

O Retorno de Simone Biles cita que nas olimpíadas, antigamente, a aparência das ginastas importava muito e cabelos loiros e lisos eram considerados os mais bonitos, o que excluía mulheres negras de serem reconhecidas como bonitas e talentosas. Simone diz que sabe como é ser a única mulher negra na equipe e não ter nenhuma referência para seguir, mas que “felizmente, tivemos Betty Okino, Dominique Dawes, Gabby Douglas e muitas outras, mas foi um pouco tarde”. E essas atletas, citadas por Biles, também sofreram com os padrões de beleza eurocêntricos.

Há 12 anos, Gabby Douglas, com 16 anos, foi a primeira negra a conquistar o ouro no individual geral da ginástica artística nos Jogos Olímpicos, em 2012. Mas o que repercutiu mesmo nas redes sociais, Twitter e Facebook, foi o seu cabelo “feio” durante a competição. Os estadunidenses reclamavam que ela precisava cuidar do cabelo, passar um gel e escova, e “representar” as mulheres negras. Aliás, algumas mulheres negras eram autoras dos comentários contra a atleta, reproduzindo a violência enraizada de que os cabelos crespos têm que estar sempre alinhados.  

Por muito tempo, e ainda hoje, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, o preconceito com cabelos crespos e cacheados é grande. Pessoas negras alisam o cabelo ou os usam presos e esticados, para se sentirem aceitas e inseridas em alguns âmbitos da sociedade, como no ambiente de trabalho. Às vezes, desistem de participar de certas atividades com medo de mostrar os cabelos ou do suor que fariam os cabelos ficarem bagunçados. Uma pesquisa de 2017, intitulada The Good Hair Study, do Perception Institute, diz que uma em cada três mulheres negras não participa de esportes e uma das causas é o cabelo, em comparação com uma em cada dez mulheres brancas. 

A cabeleireira estadunidense Malaika-Tamu Cooper diz na matéria O cabelo afro como direito civil nos Estados Unidos, do El País, que alisar o cabelo é, para além da vaidade, uma maneira de decidir como “sobreviver na América corporativa branca”. A reportagem também discorre sobre a ideia, alimentada pela mídia, de que o cabelo liso leva ao avanço econômico e social e que a mulher afro-americana mais rica no início do século XIX construiu sua riqueza a partir desse pressuposto. Madam C.J. Walker vendia produtos para alisar cabelos e o famoso “pente quente”. 

O livro Sem perder a raiz: Corpo e cabelo como símbolos da identidade, da pedagoga e antropóloga Nilma Limo Gomes, retrata a importância dos cabelos em algumas comunidades africanas nas quais os cabelos tinham significado social e importância na vida cultural das etnias. O cabelo também era parte de um complexo sistema de linguagem e podia indicar estado civil, origem geográfica, idade, religião, identidade étnica, riqueza e posição social das pessoas. 

Por isso – e outros motivos – ainda hoje o cabelo é um símbolo muito importante para a comunidade negra. Seja de resistência como os black powers, dreads e tranças, ou estética como laces, perucas e alisamentos. O que importa mesmo são as pessoas se sentirem livres para usarem o cabelo como preferirem, e como se sentem melhor. Alisar os cabelos não quer dizer negar a negritude ou não amar o seu cabelo, e isso também não deve ser passível de crítica ou questionamentos públicos. Nas olimpíadas o objetivo das atletas é executar os exercícios da forma mais precisa possível e  não estarem com os cabelos e a maquiagem perfeita. 

Por Ana Rodrigues

Textos que me ajudaram a construir o texto: https://stealthelook.com.br/as-atletas-negras-e-seus-cabelos-nas-olimpiadas-2024/  

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