Com o início de dezembro, as plataformas de streaming anunciam e promovem aqueles que serão os “queridinhos de Natal” daquele ano. Tem filme para – quase – todos os gostos; com produções infantis e animações, ficção científica, musicais, aventura e, o que não podia faltar, os romances natalinos. Essa seção engloba tanto as comédias românticas, quanto dramas e/ou somente romances, que são produções muito comuns nessa época.
O jornal estadunidense The New York Times, inclusive, realizou uma “super-análise” de 424 produções de dois canais de televisão por assinatura com foco em suas obras natalinas, que vai nos indicar exatamente quais são os estereótipos e as “receitas” para realização desses trabalhos. Algumas categorias colocadas são, por exemplo: cidades pequenas e/ou retorno à cidade natal e reviravoltas, mas não é só isso que esse tipo de produção audiovisual reproduz.
Uma busca simples por “filmes de natal” no Google já denuncia à primeira vista o questionamento do título, que nos convida para refletir sobre quais romances estão sendo retratados na época natalina. Quais corpos estão em evidência? Quais sexualidades são contempladas? Somente pelas capas conseguimos pressupor do que essas tramas vão nos mostrar: casais heterossexuais, cisgênero, brancos, sem deficiência, entre outros, são alguns indícios para nos alertar. E elas não mentem:

Aqui no Ariadnes discutimos muito sobre o papel educativo da mídia em nossas vidas; como aprendemos a performar gênero; quais dispositivos são constantemente acionados para nos levar a um lugar em comum; como somos educadas a crer em um formato universal de amor e também de performance de sexualidade, por exemplo. Com o passar do tempo, pudemos observar algumas mudanças, ainda tímidas, nas produções hegemônicas – aquelas hollywoodianas, bem inseridas nos padrões que são tidos como “base” –, com a inserção de outras narrativas, outros corpos, sexualidades e pontos de vista.
Os filmes de Natal, no entanto, permanecem com essa mesma lógica cisgênero, heterossexual e branca em seus romances, que, a cada ano, se repetem no catálogo da Netflix, por exemplo. A atriz Lindsay Lohan, estrela juvenil que passou anos sumida, é presente nessas produções dos últimos tempos, representando um papel bastante parecido: uma mulher que está vivendo e/ou conhecendo um grande amor. Aqui não estou sendo reducionista, mas não é preciso muita imaginação para encaixá-la neste tipo de história, certo? E não tem nenhum problema existirem obras assim, claro, mas a questão é: quais outras possibilidades de narrativas existem e por que elas não são exploradas? A quem interessa o apagamento e silenciamento de outras histórias de amor natalinas?
Provavelmente não existe uma única resposta ou abordagem possível para essas perguntas, porém, podemos elaborar algumas coisas a partir do que já discutimos aqui em outras críticas, como o fato de a mídia reforçar padrões sobre o amor que tornam-se inacessíveis e inalcançáveis. bell hooks, em Tudo Sobre o Amor: novas perspectivas, vai nos dizer em diversos trechos do livro como filmes, séries e obras literárias colaboram para uma representação e formação muito distantes do que é o amor de fato, já que não sabemos seu significado e, portanto, não o praticamos.
Nessas representações midiáticas o que entendemos é: as mulheres serão subservientes aos homens pois é o papel que lhes cabe; o amor não é para pessoas negras pois elas nem mesmo existem nestes papéis; pessoas LGBTQIAPN+ não têm direito ao amor e, quando têm, é no privado; entre outros indícios que nos afastam das ideias amorosas. Porém, é importante pensar em como isso foi construído e como são afirmações perversas e mentirosas. O amor deveria ser para todos nós, precisa ser.
A tranquilidade de sentir-se representada constantemente para esse mesmo público hétero-cis-branco também precisa ser alterada. Tanto para nós, enquanto pessoas LGBTQIAPN+; pessoas pretas; pessoas com deficiência nos sentirmos devidamente presentes, como estamos no mundo, e também para que essas outras pessoas possam enxergar para além de suas próprias experiências.
A Vogue elaborou uma lista dos “22 melhores filmes clássicos de Natal” em 2022 e, sem nenhuma surpresa, são os mesmos padrões que observamos hoje, é a continuidade dessa ideia de romances natalinos. De volta aos anos 40, mesmo com filmes em preto e branco, a indústria nunca mentiu – e nem escondeu – quais histórias de amor deveriam ser representadas em detrimento de outras.
Hoje, em 2024, existem algumas poucas obras que demonstram uma certa reflexão sobre a presença de mais pessoas no audiovisual de festas e fim de ano. Mas é preciso mais. Essas obras, mesmo que de forma breve, têm o poder de alterar as maneiras de existência de alguns grupos minoritários da sociedade, para legitimar suas vivências, seus amores e suas formas de estar no mundo.
Com isso, fica o incômodo: quais amores são dignos de uma obra natalina? Esperamos que cada vez mais amores possam ocupar esses espaços e que sejam representados de maneira digna e com toda a beleza que essa época do ano tem a capacidade de ser. Feliz Natal para todes! ❤
Por Lia Junqueira
