O voto feminino, a CPI da Covid e a invisibilização das mulheres na mídia

Hoje, 24 de fevereiro de 2025, celebramos 93 anos da conquista do voto feminino no Brasil. A data nos remete a uma luta histórica, marcada pela mobilização de mulheres como Bertha Lutz, que enfrentaram estruturas excludentes para garantir a participação feminina nas esferas públicas. No entanto, a garantia do direito ao voto não significou, por si só, a conquista da igualdade política. Se fosse suficiente, não estaríamos discutindo até hoje a falta de representatividade nos espaços de poder. A baixa presença feminina em cargos eletivos e a invisibilidade midiática dessas lideranças refletem um cenário ainda desigual.

Um exemplo recente dessa dinâmica foi observado na CPI da Covid, realizada entre abril e novembro de 2021 no Senado Federal. As senadoras, apesar de não terem sido indicadas formalmente por nenhum dos partidos para integrar a comissão, conquistaram espaço nos debates por meio da Bancada Feminina — criada em 2021, tem direitos de liderança equivalentes aos partidários e representa as senadoras. Mesmo sem direito a voto, as parlamentares contribuíram ativamente para as investigações e desafiaram a tentativa de silenciamento imposta a elas desde o início da Comissão Parlamentar de Inquérito. No entanto, a atuação expressiva de oito senadoras não foi refletida na cobertura da imprensa.

Durante os últimos dois anos, analisei em minha pesquisa de mestrado a cobertura da CPI no Instagram dos jornais O Globo e Folha de S. Paulo — a plataforma foi escolhida pelo amplo alcance no Brasil, com 134 milhões de usuários em 2024, e por ser central para engajamento e adaptação da cobertura jornalística ao meio digital. O resultado é alarmante: das 337 publicações feitas sobre a CPI (sendo 181 de O Globo e 156 da Folha), apenas 10 postagens mencionaram diretamente as senadoras, ou seja, menos de 3% do total da cobertura.

Para efeitos de comparação, eu quis ir além. Fiz um levantamento detalhado das 69 reuniões da CPI, analisando as notas taquigráficas e os vídeos de todos os encontros. Contabilizei o tempo total de fala de cada parlamentar e depoente e, em seguida, o de cada senadora individualmente. O resultado? Das 430 horas e 22 minutos de reuniões — o equivalente a quase 18 dias ininterruptos —, as senadoras discursaram por 152 horas, 5 minutos e 19 segundos. Os dados revelam que elas participaram ativamente de 35,3% do tempo total dos debates.

Os números precisam nos dizer algo: enquanto as senadoras participaram de mais de um terço das reuniões, receberam menos de 3% da atenção dos dois principais jornais brasileiros na cobertura realizada pelo Instagram. Mas o descompasso entre a participação ativa das senadoras na CPI e a visibilidade na cobertura não foi o único achado da pesquisa. O enquadramento dado à participação feminina reforçou estereótipos de gênero. Para além da quantidade reduzida de menções, os resultados da análise qualitativa revelaram que as senadoras foram, na maioria das vezes, retratadas em narrativas de conflito e emoção, com pouca ênfase para competência técnica, atuação política ou protagonismo nos debates.

Termos como “descontrolada”, “histérica” e “machista” foram reproduzidos nas publicações, assim como imagens que sugerem agressividade – expressões faciais intensas, dedos em riste, gestos enfáticos. Quando a contribuição técnica era mencionada, frequentemente acabava sendo ignorada ou minimizada, e os conteúdos que a destacavam registraram menor engajamento.

Os dois jornais reforçaram a ocasião em que a então senadora Simone Tebet foi chamada de “descontrolada” pelo então ministro da CGU, Wagner Rosário. A cobertura desse episódio seguiu um padrão recorrente nos dois jornais, possibilitando ao leitor a percepção de que mulheres assertivas são emotivas ou agressivas, enquanto homens que adotam a mesma postura são firmes e estratégicos.

Essa abordagem dos jornais pode ser explicada pela teoria do enquadramento (framing), proposta por Erving Goffman (2012) e Robert Entman (1993). Segundo essa perspectiva, a mídia não apenas informa, mas molda a percepção do público ao enfatizar determinados aspectos da notícia. No caso da CPI, a decisão editorial de dar mais espaço ao conflito e ignorar a competência técnica das senadoras reforçou a visão de que política ainda é um território masculino, perpetuando a exclusão simbólica das mulheres da tomada de decisões e limitando o reconhecimento feminino como agentes legítimas para esse campo.

O problema, no entanto, não se restringe à mídia. A sub-representatividade feminina nos espaços de poder é estrutural. Os números das eleições de 2022 evidenciam a desigualdade. Apesar de as mulheres representarem, naquele momento, 52,6% do eleitorado, apenas 17,7% das cadeiras na Câmara dos Deputados e 14,8% do Senado foram conquistadas por elas. A literatura sobre violência política de gênero aponta que a exclusão feminina do debate público vai além do não reconhecimento da competência para esse ambiente, sendo manifestada também por meio de ataques verbais, assédios e ameaças. No Brasil, parlamentares frequentemente enfrentam essas situações, ampliando barreiras para a permanência e ascensão no sistema político.

Dados do Observatório da Mulher contra a Violência do Senado Federal, divulgados em abril de 2023, revelaram que 32% das mulheres relataram ter enfrentado algum tipo de discriminação de gênero no ambiente político. Em comparação, apenas 10% dos homens afirmaram ter passado por esse tipo de situação. Entre as formas de violência mais comuns mencionadas pelas mulheres estão: desigualdade na distribuição de recursos partidários em relação a outros candidatos; interrupções ou impedimentos durante discursos; desqualificação com base no gênero; ameaças, humilhações, chantagens, calúnias, difamações ou injúrias; além da obrigação de repassar recursos da campanha para outro candidato. Também foram relatados casos de danos à propriedade e violência sexual.

A verdade é que a reflexão sobre a participação feminina na política não deve ficar restrita ao número de mulheres eleitas, mas incluir a forma como essa presença é reconhecida e representada. A imprensa desempenha um papel central nesse processo, influenciando a percepção pública sobre lideranças femininas. No caso da CPI da Covid, tanto o silenciamento quanto o enquadramento enviesado impactaram a imagem das senadoras e reforçaram estereótipos que dificultam a ascensão política de outras mulheres.

Ao comemorarmos o aniversário do direito ao voto feminino, não podemos nos limitar à celebração. Precisamos olhar para os desafios ainda presentes e exigir mudanças. A imprensa deve reavaliar os critérios de cobertura, garantindo que a atuação feminina seja reconhecida de forma justa e proporcional. O direito ao voto foi um marco essencial, mas a verdadeira participação das mulheres na política ainda é um projeto inacabado.

Por Kelly Almeida
jornalista e Mestra em Comunicação pela Universidade de Brasília

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