The Uncensored Library, ou a biblioteca não-censurada, é um projeto construído dentro do jogo Minecraft, que é um jogo de mundo aberto onde os jogadores exploram, constroem e sobrevivem em um ambiente feito de blocos, e permite a criação infinita, multiplayer e modos de jogo variados. O projeto foi desenvolvido para dar acesso à informação às pessoas que moram em países que sofrem com rígida censura midiática, e foi criado pelo Repórteres sem Fronteiras, Block Works, DDB Berlin e Mediamonks, em 2020, como uma forma criativa de driblar essas questões regulamentadoras. A livraria conta com um acervo de 200 artigos de países como Rússia, Egito, Arabia Saudita, México e Vietnã. Com novas atualizações, ganhou salas para o Brasil, Bielorussia, Eritreia e Irã.
Porém a Rússia e o Egito restringiram o acesso ao servidor depois de perceber o seu intuito. Apesar disso, a comunidade continua prosperando, e o conteúdo pode ser baixado e lido de forma offline também. Eu mesma só fui descobrir a existência desse servidor em janeiro de 2025, mas me surpreendi quando soube que a iniciativa até já ganhou prêmios (Peabody Award, em 2022). Decidi escrever esse texto para contar sobre a inventiva inovação, que transformou o jogo em uma ferramenta para desafiar os limites da censura jornalística dentro do espaço virtual.
Em 12 de março de 2020, a biblioteca abriu suas portas, e com apenas duas semanas, o servidor já alcançava 65,000 downloads de todo o mundo, e os usuários do servidor passaram, no total, um ano e quatro meses lendo os textos sobre 180 países. No site oficial, pode-se ter acesso a mais informações (em inglês).
Governo Trump
O servidor não foi criado durante o governo de extrema direita de Donald Trump, porém acredito que seja importante ressaltar que o discurso inflamado do agora eleito presidente estadunidense é perigoso e demarca um forte levante contra diversas formas de expressão, restringindo a liberdade de diversos grupos minoritários. Recentemente Judith Butler, para o jornal britânico The Guardian, escreveu sobre Trump:
“Se continuarmos a nos sentir tomados pela indignação e paralisados pela estupefação diante de cada nova proclamação anunciada cotidianamente, não conseguiremos discernir o que as conecta. Ser dominadas, dominados, dominades por suas declarações é exatamente o objetivo de seus pronunciamentos. Estamos, em grande medida, sob seu domínio quando ele nos captura e paralisa. Embora existam muitos motivos para estarmos enraivecidos, não podemos deixar que essa raiva nos inunde e paralise nossas mentes. Pois este é o momento para compreender as paixões fascistas que alimentam essa busca descarada por poderes autoritários.”
Judith Butler
Guerra cultural
Como a cultura salva o jornalismo e a literatura do Fahrenheit 451 (ou 233º Celsius)? Para quem leu o livro, uma ficção científica distópica, sabe que essa é a temperatura necessária para queimar papel. A obra de Ray Bradbury narra a jornada de Guy Montag, um bombeiro cuja principal função é destruir livros, mas que começa a salvá-los ao invés de queimá-los. Este é, ironicamente, um dos livros banidos nos EUA. Confira alguns dos títulos presentes na lista:
- Fahrenheit 451, de Ray Bradbury
- Meio sol amarelo, de Chimamanda Ngozi Adichie
- O olho mais azul, de Toni Morison
- O Sol é para todos, de Harper Lee
- Anna Karenina, de Liev Tolstói
- Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire
- The ABCs of Black History, de Rio Cortez
- As Crônicas de Gelo e Fogo, de George R. R. Martin
- Jogos Vorazes, de Suzanne Collins
O episódio de censura e banimento dos livros demarca uma quadra da história que, além de lamentável, é alarmante para os EUA. Para tentar combater isso, vimos um aumento nas compras de O Conto da Aia, de Margaret Atwood, romance ambientado em uma sociedade totalitária, que foi para a lista de mais vendidos após a reeleição de Donald Trump, “e está em nono lugar na lista de livros mais vendidos da Barnes & Noble, maior rede de livrarias dos EUA”, segundo matéria da CNN. Ler livros banidos é um ato revolucionário.
Vimos também que as vendas de outros romances distópicos que tratam sobre opressão, como “1984”, de George Orwell, teve um aumento de 250% em suas vendas na Amazon, continua a reportagem.
Em 2023 e 2024, a estimativa é de que 10 mil livros foram banidos, e essa estatística pode aumentar ainda mais no governo Trump, republicano do movimento extremista MAGA (Make America Great Again). O partido é o maior responsável por essa censura sem precedentes. Como resposta, a imponente fachada do prédio da Biblioteca de Nova York (estado tradicionalmente democrata, segundo matéria do Poder 360), enfileirou cartazes que “anunciam uma campanha contra a censura de livros, […] adotadas por escolas públicas, bibliotecas e governos locais pelo território dos EUA”.

Já em outros estados, vemos justamente o movimento contrário. Iowa aprovou a lei 496 em 2023, prevendo somente o oferecimento de livros “apropriados para a idade”. Bem genérico, né? Abrindo margem para diversos tipos de interpretação sobre o que é “age appropriate”. E piora!, pois proíbe, também, qualquer descrição de “ato sexual” nas obras, ou seja, debates sobre gênero não terão espaço. Na Flórida observamos o mesmo movimento, que “estipula que qualquer livro que debata a “conduta sexual” de um dos personagens deve ser suspenso imediatamente, enquanto um processo de revisão da obra é realizado para avaliar se ela pode ou não continuar nas prateleira”. Quem revela isso é Jamil Chade, colunista do UOL, fazendo a mesma denúncia sobre estados como Utah, Carolina do Sul, Tennessee e Wisconsin.
O olho mais azul, O sol é para todos, Anna Karenina Anne Frank e Morte no Nilo
Ao analisarmos quais são as obras com foco da censura, percebemos a ligação com a pauta reacionária e fascista, fortemente disseminada pelos republicanos aliados de Donald Trump. Ele mesmo se orgulha de ter indicado “três juízes conservadores que alteraram o equilíbrio da Suprema Corte dos EUA e, que em 2022, revogaram o caso Roe vs. Wade, jurisprudência que legalizou o aborto em 1973”.
Livros como O olho mais azul, que denuncia o racismo estrutural nos EUA, está banido. Também vemos essa proibição em obras que versam sobre temas envolvendo diversidade e os direitos reprodutivos de mulheres, assim como do movimento LGBTQI+. Essas pautas são alvo de represália profunda, e a obra de Toni Morrison, por exemplo, é um romance muito impactante que aborda questões de raça, gênero, identidade e beleza em uma sociedade racista e patriarcal.
Como podemos deixar de debater sobre uma menina negra que internaliza os padrões de beleza eurocêntricos, desejando ter olhos azuis como forma de escapar da opressão e da rejeição que enfrenta, como?! A obra é uma crítica contundente ao racismo internalizado e à destruição que ele causa, especialmente em mulheres e meninas negras, e apesar de ter sido lançado em 1970, ainda traz uma discussão muito atual para o nosso agora.
“Mas, como é difícil lidar com o porquê, é preciso buscar refúgio no como“
– O olho mais azul
O Sol é para Todos (ou To Kill a Mockingbird), de Harper Lee, é uma obra que, para mim, continua essencial para a compreensão de questões profundas como racismo estrutural, justiça, ética e moralidade. Ela expõe as crueldades e injustiças da sociedade (lê-se pacto da branquitude), de 1930 para com a população negra dos EUA. O livro nos desafia a refletir sobre preconceitos e a importância de lutar por equidade, mesmo quando essa luta parece perdida. Além disso, a obra ajuda a rememorar que a educação é uma poderosa ferramenta para combater a intolerância. Assim como a obra citada acima, tem relevância atemporal e sua capacidade de inspirar reflexões profundas, faz com que se torne uma leitura indispensável.
Livros que exploram mulheres progressistas/independentes, ou a emancipação feminina, como Morte no Nilo, de Agatha Christie, e Anna Karenina, de Liev Tolstói, também foram censurados. Obras tão essenciais para compreender as lutas, contradições e conquistas das mulheres ao longo da história, principalmente por tratarem de romances de época. Cada uma à sua maneira, ilumina as complexidades da condição feminina em sociedades marcadas por estruturas profundamente patriarcais e normas de gênero opressivas.
Em Morte no Nilo, personagens como Linnet Ridgeway e Jacqueline de Bellefort revelam as tensões entre autonomia, dependência emocional, ciúmes, traição e rivalidade feminina. Enquanto em Anna Karenina, a protagonista tenta se libertar e desafia as convenções sociais, em um contexto que ativamente condena suas escolhas afetivas. Essas narrativas não apenas retratam as barreiras enfrentadas pelas mulheres, mas também inspiram reflexões sobre resistência, identidade e, novamente, a busca por igualdade. Ao ler essas obras, conectamo-nos com as narrativas de mulheres que, em diferentes contextos, questionam e desafiam as expectativas impostas sobre elas.
Já O Diário de Anne Frank nos apresenta a voz corajosa de uma jovem judia que, mesmo vivenciando os horrores do Holocausto, escreve sobre sua rotina, sua identidade, as esperanças que possuía e, principalmente, sobre a força do espírito humano. Porém foi censurado, em um primeiro momento por seu pai, Otto Frank, que editou a primeira edição da obra, por conter algumas anotações sobre sexualidade e anatomia feminina, piadas com teor sexual e relatos de sua atração por uma garota. Isso ocorreu antes da publicação do diário, em 1947, e deixo aqui o link da matéria da BBC contendo um pouco desse conteúdo.
Em um segundo momento, nos EUA, o pedido de censura veio de Gail Horalek, que chama a obra de “pornográfica“. Como justificativa, ela citou, justamente, “uma passagem da versão “definitiva” do livro, que inclui material ausente da primeira edição”. Gail, mãe de uma aluna da sétima série de Northville, no Estado do Michigan, em 2013, se preocupou com as descobertas sobre o próprio corpo que Anne relata na parte amplamente censurada de seus diários. A Flórida expôs a mesma preocupação em 2023.
Outros livros banidos foram os que discorriam, ou apenas apresentavam relatos de mulheres e meninas que foram alvos de abuso sexual ou estupros. Podemos citar nessa categoria o conto distópico O Conto da Aia, que foi brilhantemente discutido e apresentado na crítica da Aryanne Araújo aqui no Ariadnes, vem ler!
Por fim, gostaria de lembrá-los de que precisamos resistir a essa onda de perseguição, que acometeu os EUA e atualmente permeia diferentes partes do mundo. A discussão não se encerra quando saímos da internet, a censura pode estar mais próxima do que antecipamos. Como forma de resistir, a recomendação é continuar lendo. A citada Biblioteca Pública de Nova York propôs a criação de um grupo de leitura de adolescentes, ação que se aproxima de uma iniciativa daqui, na Universidade Federal de Ouro Preto, com o Levante dos Banidos (@leituras_banidas).
“Acreditamos que todos devem poder exercer sua liberdade de escolher o que ler. Estamos unidos às bibliotecas e comunidades de todo o país na oposição aos esforços para censurar ou proibir livros. Somos solidários com nossos colegas bibliotecários e membros da comunidade que estão sendo ameaçados. Demonstre nosso compromisso compartilhado com essa liberdade fundamental”, declarou Tony Marx, presidente da Biblioteca Pública de Nova York.
Por Sophia Helena Ribeiro
