Mc Carol, Tati Quebra Barraco, Valesca Popozuda: o que essas mulheres têm em comum? Todas elas são cantoras de funk e falam abertamente sobre sua sexualidade, seus corpos e são citadas no podcast Desembaça. Desembaça é um podcast sobre o papel das mulheres na construção da cultura funk e foi desenvolvido como Trabalho de Conclusão de Curso da jornalista Yasmim Paulino, para concluir sua graduação na Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop).

No primeiro episódio é apresentado e contextualizado o início do funk no Brasil, entre os anos de 1980 e 1990, passando por memórias da própria locutora sobre o gênero. Os primeiros bailes eram realizados no Canecão, um espaço que posteriormente virou casa de shows de MPB e convidou a festa a se retirar, levando os encontros a ocuparem outros espaços, como subúrbios e favelas, tornando-se popular entre o público pobre e negro. Nesse episódio ela também fala sobre como o jornalismo teve um papel fundamental na marginalização do ritmo, associando os bailes ao tráfico e a outros tipos de crime, o que influencia na aceitação das músicas até hoje.
Com uma edição bem feita e fluida, Yasmim narra sobre as primeiras mulheres a enveredar por esse gênero. Nesse episódio são falados nomes de mulheres como Verônica Costa, uma das fundadoras do Furacão 2000 que sempre enaltecia as funkeiras usando termos como “glamourosas, purpurinadas e poderosas” e, como destacado durante a locução, batia de frente com outras denominações como preparadas e tchutchucas, usadas nas músicas pelos homens com uma perspectiva machista. Outros nomes são de MC Ellu, possivelmente a primeira funkeira mulher que gravou, em 1992, um funk que pautava o assédio, Mc Cacau, MC Dandara e Deize Tigrona, que começa o movimento de cantar sobre o desejo feminino na perspectiva das mulheres, dando início ao funk sensual.
No fim desse primeiro episódio, intitulado “valeu, mto obrigada mas agr virei p*ta” – trecho da música de Valesca Popozuda – Yasmim faz o seguinte questionamento: “Mas o que será que significa uma mulher cantar sobre putaria? Uma mulher negra vai subir no palco e te dizer com autonomia sobre o próprio desejo?”.
É a partir desses questionamentos que o segundo episódio, “fama de put0n@”, fala sobre outra geração de mulheres no funk, que pautam o sexo na maioria de suas composições. Nessa época o funk retratava apenas o lado masculino da sexualidade, o que começa a mudar com a nova geração, com destaque para Tati Quebra Barraco, Vanessinha Pikachu e Valesca Popozuda. Nesse episódio a locutora conta sobre uma situação vivida por Tati Quebra Barraco, que foi convidada a representar o Brasil no festival alemão Ladyfest, uma viagem financiada pelo Ministério da Cultura que recebeu diversas críticas, como a da feminista e integrante da secretaria especial de Políticas para Mulheres Rose Marie Muraro, que disse: “Tati é um objeto sexual não um agente de mudanças”, em uma entrevista para a revista Istoé em 2004.

Esse preconceito com o funk e com as funkeiras vem de um lugar da moral, como explicado por Yasmim durante o podcast. As mulheres do funk tiram “das quatro paredes do matrimônio” o sexual e cantam isso abertamente. Podemos fazer aqui uma comparação com Rita Lee, que cantava sobre sexo e posições sexuais, e é vista como símbolo de liberdade e de amor. Rita é vista como agente de mudança e não objeto sexual. Será que isso acontece porque ela era branca, classe alta e casada?
O funk da geração de Tati Quebra Barraco traz a possibilidade de fazer “emergir minorias por meio da representação midiática”, como diz a pesquisadora Natália Lima Amaral em seu TCC sobre a representação e a loucura. O funk como gênero musical, antes cantado por e na perspectiva dos homens, com a chegada das funkeiras se torna um espaço de falar também sobre a perspectiva feminina, principalmente relacionada ao sexo e ao prazer, mas não só.
MC Hariel, famoso por cantar funks conscientes, comenta, em uma entrevista com Marcelo Tas no programa Provoca da TV Cultura, sobre como os MCs têm a função de trazer e apresentar a “cultura”, músicas, livros e pensamento para a população periférica que talvez não tivesse acesso em outro formato. Além disso, Hariel responde uma pergunta dos telespectadores sobre o funk ser machista da seguinte forma: “Acho que funk é um retrato da sociedade”. Segundo ele, o grupo social que canta e escuta funk é o que mais consome televisão e outras produções das classes de cima, então criticar apenas esse gênero, e não outras produções como as novelas e filmes, é hipócrita.
Ainda no primeiro episódio o Desembaça cita uma entrevista de Valesca Popozuda em que ela fala que recebia diversas cartas de fãs falando que passaram por abuso e agressão, porque ela apresentava esse lugar de expor e dar voz a situações vivenciadas na comunidade que não eram explícitas de outras formas. As funkeiras traziam, mesmo que sem esse nome, o discurso feminista para perto das mulheres das comunidades, dando visibilidade para um assunto que não chegaria nelas de outra forma.

Durante o podcast, Yasmim entrevista GG Albuquerque, crítico musical, doutorando em Comunicação na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e responsável por criar o termo poética da putaria, que é o tipo de narrativa criada por Tati Quebra Barraco, em que o sexo presente nas letras do funk perpassa questões de raça, classe e gênero. Com essa poética da putaria, as MCs trazem e dão visibilidade a assuntos pouco discutidos na perspectiva feminina, colocando em disputa, dentro do funk, o discurso do homem como dominador das relações e como o único detentor do prazer feminino.
No terceiro episódio escutamos sobre MC Carol de Niterói, Bonde das Maravilhas, MC Rebeca, MC Anitta, MC Beyonce e MC Pocahontas, que, mesmo fazendo parte da mesma geração, têm aspectos musicais distintos. Com o acesso à internet e as discussões sobre o corpo feminino ganhando novas proporções, em 2019 se inicia uma nova geração, intitulada por Tamiris Coutinho, autora do livro Cai de boca no meu b*c3t@o: O funk como potência do empoderamento feminino, como bonde das faixa rosa. Esse grupo é composto por MC Drika, Bianca, Paty Trem Barbie, entre outras funkeiras, que passam a usar o funk como um espaço empoderador em diversos aspectos de sua vida, sem necessariamente passar pelo sexo.
Ainda no terceiro e último episódio, outros pesquisadores de funk discutem sobre a dualidade do gênero musical no sentido da liberdade. GG Albuquerque diz que, mesmo o funk sendo um espaço de empoderamento, é, também, um lugar dúbio e delicado como formador de liberdades. A própria indústria cultural empurra as funkeiras para o lugar de cantar putaria, porque é o que vende. GG cita uma entrevista em que MC Dandara fala sobre isso: como o que vende é a putaria é para lá que a MC foi. Mesmo com maior visibilidade atualmente, o mercado da música ainda não valoriza o funk e nem as mulheres funkeiras fora da lógica do mercado de compra e venda.
Tamiris Coutinho fala sobre como a objetificação e o empoderamento sempre vão estar no mesmo caldo social do funk e que, para ela, o empoderamento vem no sentido do direito ao prazer que ainda é negado a algumas mulheres, e que é um espaço muitas vezes reivindicado pelas funkeiras, que passam outra perspectiva do sexo. Como disse Danilo Cymrot, autor do livro O funk na batida: Baile, rua e parlamento, em entrevista a Yasmim Paulino, o funk tem esse caráter de conseguir transgredir conceitos sociais, mas também de reforçar estereótipos, já que é um universo tão amplo.
Por Ana Beatriz Justino
