As Bastos são fortes

Mariana -MG
2023

Imagem: arquivo pessoal

Passou-se mais um dia agitado no antigo depósito de gás do Seu Figueiredo, com entradas e saídas de veículos enfumaçados e latidos dos cachorros do quintal. Nesse mesmo endereço, moram diferentes partes da mesma família, ali onde alguns nasceram – no mesmo cômodo onde vieram à vida – no pacato distrito de Santo Aleixo, Rio de Janeiro. Há uma casa maior, pintada com um azul desbotado, caindo aos pedaços do que já foi um dia. Ao lado, um portão enorme de metal todo vazado, dando a possibilidade de observar as árvores frutíferas, carregadas nesse momento do ano. Há também uma casa menor, de telhado antigo e fachada simples. Ela tem um jardim simpático e florido na frente, fazendo jus ao nome da rua, que é Bom Jardim. 
Nessa mesma residência mora uma mulher baixinha de 60 e poucos anos, amigável e de riso frouxo. 

– Cristina! – alguém grita do portão, interrompendo nossa conversa recém começada.

Ela diz que já volta e vai ser rápida. Mentira. Mas não me surpreende, dada a capacidade comunicativa dela, que indo ao mercado conversa com, ao menos, meia dúzia de pessoas. Cristina Maria Bastos de Lima é a quinta de sete filhos. Nasceu em julho de 1958, no mesmíssimo quarto em que dorme todo dia. Seus cabelos são curtos, seus olhos são grandes e estão envoltos em seus óculos. Seus lábios estão sempre cobertos por batom. Sua voz é doce e, quando precisa, é impositiva. Sempre rodeada de muita gente e apreciadora dos momentos sozinha, em que pode chorar – não negando o estereótipo da canceriana com ascendente em câncer – e rezar para todos que promete. Ela retorna após quase meia hora e pergunto:

– Quem é Cristina? 

Ela pensa para responder e diz:

– Uma mulher humilde e batalhadora. 

– Só isso? – respondo inconformada com a resposta breve. 

– Acho que sim né… 

Ela considera sua vida e sua personalidade comuns e modestas. Porém, as vivências narradas denunciam a pessoa extraordinária, forte e única que é. 
No início do papo, pergunto como foi sua criação e ela, falando quase que em terceira pessoa de si mesma, conta diversas passagens:  
Na infância, Cristina sai de Santo Aleixo, mais ou menos no interior do Rio de Janeiro – o distrito mageense fica na região metropolitana. Por decisão do seu pai, vai com a família para Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo. Ele almejava melhores condições de estudo para as sete crianças e sucesso nas vendas de seu armarinho e, sendo assim, viu ali oportunidades. Porém, com pouco tempo seu pai descobriu que a vida ali era complicada e retornou para o endereço anterior trazendo aquela “renca” de gente. 

A jovem desenvolveu-se muito bem na escola e, aos 18 anos, entrou na faculdade de Administração na antiga AFE, agora Universidade do Grande Rio. Sua formatura foi a primeira da família no Ensino Superior, trazendo tamanha celebração ao seu pai, que era semianalfabeto, e a sua mãe, de origem simples. Isso levou suas irmãs a ingressarem na universidade e compartilharem daquela experiência.

– Partindo para fase adulta, quem é essa Cristina e o que ela herdou do ciclo anterior? 

– Ai não sei, antes eu era muito quieta, tinha muita vergonha de mim… – parece que ela tem certa dificuldade de começar a falar, mas logo vem a resposta que desejava.

Por mais que ressalte sua timidez na infância, na juventude compreendeu-se melhor e começou a ter contato com muita gente, formando novos laços que leva até hoje. No auge dessa etapa, viajava em todas as oportunidades que podia, sempre conciliando trabalho e  graduação. As viagens eram, em sua maioria, para a região Nordeste com suas irmãs, Regina Maria e Maria Isabel, e suas amigas mais próximas, Marise, Leila e outros nomes que foram surgindo. 

Há um relato em específico sempre contado por ela: a ida a Canoa Quebrada, Ceará, em 1984. Era um verão especialmente quente e o bronze estava a todo vapor nas lindas – e pouco exploradas, na época – praias de lá. Os dias agitados acompanhavam as noites no Forró de Chão Batido em frente à casa de Dona Luci, onde as meninas ficavam. Era tamanha a animação que Cristina voltou com dois roxos na perna de tanto dançar ao som de estrelas com as músicas de Alípio Martins, cantor de sucesso na época. 
O Grand Finale dessa viagem foi a marca eterna na pele de Regina, que tatuou, na beira da praia com Pablito, uma lua crescente com pássaros atravessando.  

Para além dos passeios literais, havia os escritos: as pessoas com quem se correspondia – que nos anos 70 ultrapassaram a marca de 100 contatos. Essas pessoas marcaram sua trajetória de vida e permanecem como amigos após o fim da “moda” da correspondência. Moda que jamais saiu da vida dela. Sua escrita é descomplicada e gostosa de ler, seus registros fotográficos têm a beleza de um profissional das câmeras analógicas, seu estilo tem o básico e o divino em tudo. Seu jeito de ser encantava quem escrevia para Cris naquele período e continua encantando hoje. Há um relato preciso da sua irmã Regina, como parte de uma carta de aniversário escrita por Cristina em 1983, que ressalta sua ligação:

– Falar de Cristina Maria é falar da minha existência!!! Pensa em duas pessoas ligadas pela “Alma”!!! Nossa definição??? “Junto a Ti, feito Corpo e Alma. Minha Irmã, meu Par. (Kleiton e Kledir)”. 

Um trecho dessa mesma carta:

– “Sei que a vida vai aprontar e o que vier, azar a dois é fácil segurar(…) Acho que nunca uma música nos descreveu tão bem, não é mesmo? Para você, com todo o meu carinho. Um beijão.”  

Antes dos 30 anos, acompanhou todo o processo de adoecimento de sua mãe, que em menos de dois anos, após a descoberta de um câncer de estômago, faleceu sob seus cuidados. Ela ficou ao lado da Dona Deonir até os últimos momentos, paralisando sua carreira, saídas e mostrando o quão comprometida é. Não passou tanto tempo assim e seu pai, com um infarto inesperado, também deixou saudades. Sua perseverança não a deixou desanimar em meio ao período mais conturbado da sua vida. 

É quase final de uma das entrevistas e pergunto: 

– Você destacaria alguma grande virada em sua vida? – essa pergunta tem resposta imediata.

– Claro! A maternidade e o câncer. Esses dois me ensinaram a ser muito, muito melhor.

Cris foi mãe aos 45 – do segundo tempo – anos. Foi uma gravidez de risco, com direito a diabetes gestacional e quase 20 dias internada na maternidade pública Fernando Magalhães. No final das contas deu tudo certo e hoje eu estou no terceiro período de jornalismo na UFOP.
Já o câncer, foi diagnosticado em 2010 em exames de rotina, inicialmente na mama. Desde então ela está em tratamento no Instituto Nacional de Câncer (Inca) e permanece resiliente a cada dia. Passou por quatro cirurgias e diferentes tipos de tratamento, desde quimioterapia venosa até a hormonioterapia. Ela segue em acompanhamento, forte e convicta da vida. 

Ao final da entrevista, Cristina conta uma história:

– Há uma passagem na família Bastos que gosto muito. Todas as mulheres da família sempre passaram pelas adversidades da vida de forma corajosa, firme e vigorosa, por isso, são conhecidas por sua garra. 

Deonir não foi diferente; minha mãe, Cristina, não é diferente. Afinal de contas, as mulheres da família Bastos são fortes demais.

*Este texto foi escrito em fevereiro de 2023, quando estava no terceiro período, e recuperado em março de 2025, mês que marca o primeiro ano sem Cristina. É um perfil da entrevistada, uma breve retomada à sua história de vida e sua construção sob meu ponto de vista – como filha. Além da data difícil que me atravessa, este registro é importante para seguir nessa vida, com as poesias e a força de Cristina. 

Lia Junqueira

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