Quem tem o direito de “ser menina”? 

Quando pensamos nas fases da vida de uma pessoa que foi designada ao nascer com o gênero feminino e se identifica com ele, o processo da adolescência/pré-adolescência está marcado como um momento repleto de descobertas e processos de amadurecimento. Desde a primeira menstruação até as relações românticas que costumam se iniciar neste período, com o desenvolvimento e expressão da sexualidade, é preciso ter acesso a informações seguras para garantir a liberdade para ser quem somos. 

No entanto, nem todas as experiências são iguais, com pessoas que conseguem vivenciar todos esses processos de maneira tranquila e outras que “pulam” alguns – não por vontade própria, mas por outros motivos que determinam suas vidas. O filme brasileiro de 2010, Sonhos Roubados, dirigido por Sandra Werneck, mostra o cotidiano de três meninas que vivem em uma comunidade do Rio de Janeiro e enfrentam diversos entraves para continuarem nessa vida. 

Imagem: cena do filme 

O longa acompanha Jessica, Daiane e Sabrina, estudantes da rede pública carioca, interpretadas por Nanda Costa, Amanda Diniz e Kika Farias, respectivamente. A amizade carinhosa e bonita nos mostra uma relação que vai além do apoio, existe ali um cuidado e olhares atentos umas com as outras – olhar esse que as três não recebem de seus ciclos familiares, por exemplo. A realidade penosa as coloca em situações precárias, como a necessidade de se prostituírem para garantir a alimentação de sua filha, no caso de Jessica; para que os abusos e violências do tio sejam agora pagas, para Daiane; e para complementar a renda de Sabrina, que mora de aluguel. 

As opressões somam-se nessas vidas, fazendo com que aspectos de classe e gênero atuem na manutenção das violências sofridas e mais, colocando como “única opção” a venda de seus próprios corpos para subsistência e para alguma possibilidade de liberdade – se é que pode-se afirmar isso neste caso. A trajetória do filme nos serve de alerta para a forma com que mulheres e meninas (cisgênero ou trans) recorrem à prostituição como alternativa de sobrevivência e/ou para superar outros empecilhos, por necessidade. Porém, a forma como essas relações se dão causa danos e traumas que ficam marcados nos corpos e mentes dessas pessoas. 

No caso de Sonhos Roubados, a identidade de “menina” é retirada à força, deixando explícito nas expressões, dia a dia escolar e formas de falar, que foi uma realidade imposta e não escolhida por nenhuma das três. Elas gostariam de ser meninas, de viver na idade e corpo que têm – por volta de 15 até 17 anos no filme –, mas se vestem da figura mulher, com roupas e experiências destinadas a elas. Quando Jessica é estuprada por dois homens dentro de um carro e é jogada para fora, o choro não é só pela violação brutal que acabou de sofrer, mas também para não estar mais naquela posição, que a fere repetidas vezes. Ela precisa ser “dura” e se impor como autoridade em algum sentido, mas ainda se lembra de quando ajudava o avô na oficina quando criança e guarda com carinho esse sentimento. 

Quando Daiane encontra, de alguma forma, uma figura materna em Dolores (Marieta Severo), ela é “boba” e infantil, como deve ser. Seu sonho era pintar o cabelo de loiro e ter uma festa de 15 anos – idade que comemora durante a trama. Além disso, algo que vale para todas as meninas é uma sensação de cuidado que falta, ainda que seja pouco, elas o desejam. Quando Sabrina se envolve com um homem mais velho, que provê casa e comida para a jovem, ela se vê feliz, pois deseja o cuidado. 

O filme aborda e nos incita à discussão de diversos tipos de violência, como estupro, abuso de familiares, relacionamentos abusivos, entre outros. Porém, todas elas nos levam até uma só discussão: quem tem o direito de ser menina? Por que umas podem enquanto para outras é impossível? 

São perguntas difíceis de serem respondidas de forma objetiva, mas é possível traçar caminhos que nos levem até essas respostas: um deles, nos lembra Heleieth Saffioti – no livro Gênero, Patriarcado e Violência, de 2004 –, ao explicar sobre violência de gênero e porque mulheres e meninas estão na ponta. Ou mesmo Guacira Lopes Louro – em O Corpo Educado, de 1999 –, que expõe como a criação de meninas possui “pedagogias da sexualidade” diferentes dos meninos, com menos liberdade e mais obediência para esses corpos. 

No final da trama entendemos que alguns sonhos foram, de fato, roubados dessas três meninas-mulheres, mas não todos. Elas resistem e buscam apoio umas nas outras, fazendo uma rede de sobrevivência – como aquela das amizades-amores que já falamos por aqui. É preciso lutar e garantir que os sonhos, infâncias e adolescências de outras meninas não sejam roubados, mas preservados e vivenciados com tranquilidade, amor e liberdade. 

Serviço: 

Título Original: Sonhos Roubados 
Onde Assistir: Amazon Prime Video e Youtube 
Classificação Indicativa: 16 anos (A16)
Classificação da autora: 18 anos (A18)
Justificativa: O filme retrata violência explícita e abuso sexual. Além disso, trata de temas sensíveis.
Gênero: Drama/Amadurecimento. 

Por Lia Junqueira

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