A amizade e a ausência na linguagem de Elena Ferrante

A tetralogia napolitana, da autora italiana Elena Ferrante, conta sobre a realidade de uma Nápoles pós-Segunda Guerra, enfrentando as consequências desse período: a pobreza, a fome e a violência. Para além disso, os livros são um retrato de como era ser mulher na sociedade da época, mostrando como alguns desses desafios também perpassam a atualidade. São quatro títulos: A amiga genial, que acompanha as garotas na infância e pré adolescência; História do novo sobrenome, o qual relata a adolescência; História de quem foge e de quem fica, abordando a vida adulta; e História da menina perdida, que conta sobre a velhice das duas amigas.

Ao acompanhar Rafaella Cerullo (Lila) e Elena Greco (Lenu) crescendo, é possível compreender o papel de mulheres por toda a vida, em diferentes contextos; as duas são muito diferentes e, por suas escolhas, isso é intensificado. Mesmo em meio às diferenças e ao caos que as cercam, algo se constrói: a amizade.

Elena Greco (Lenu)  abraça Rafaella Cerullo (Lila), enquanto leem  “Mulherzinhas” em cena da série “My brilliant friend”, de 2018, baseada na tetralogia napolitana

Amizade

Em A amiga genial, as garotas enfrentam a figura de Dom Achille, monstro de suas histórias infantis. Com o dinheiro que recebem do homem, compram um exemplar do livro Mulherzinhas, de Louisa May Alcott: elas passam  dias lendo trechos juntas, compartilhando seus sonhos de saírem do bairro e passam a ver uma à outra como irmãs, assim como as protagonistas da obra que as acompanhou. Suas vidas tornam-se conectadas, assim como suas ações; onde está Rafaella Cerullo, encontra-se Elena Greco.

Toda garota já passou pela experiência de se conectar tão fortemente com uma amiga que vocês passam a ser uma só: os filmes, os livros, os gostos e as opiniões nunca mais se decidem sozinhos. Mas, em algum momento, a vida leva vocês para lugares diferentes. Suas opiniões não são as mesmas, porque suas vivências são diferentes; vocês não se entendem mais. Lenu e Lila enfrentaram esse mesmo problema por toda a vida, discutindo entre si e, a cada livro, dividindo mais minha opinião sobre quem é a “amiga genial” – de acordo com Rafaella Cerullo, esse papel é ocupado por sua amiga.

“Eu quero que você estude, que vá embora daqui, que se torne a melhor de todas, como você já é. Você é minha amiga genial, precisa se tornar a melhor de todos, entre homens e mulheres.” – Lila Cerullo

Em determinados momentos, Lila é o centro dos holofotes. No primário, é a pupila da professora; na adolescência, é casada, tendo um filho ainda jovem e sendo dona de casa, a garota que alcançou o sucesso na visão dos pais. Sua astúcia e coragem atraíam a todos do bairro e, com o passar dos anos, sua generosidade com os moradores do local a tornou uma figura especial ao olhar das pessoas. Apesar disso, Lenu também alcança o apreço dos demais; ela ingressa na escola, depois no ginásio e, ainda, na universidade. Se torna uma escritora famosa, com um marido respeitado e filhas. É uma disputa entre elas mas, ao mesmo tempo, uma demonstração do impacto das escolhas (aquelas que são suas ou as que lhe foram impostas); afinal, quem realmente alcançou o sucesso? Existe uma fórmula para a felicidade?

Lenu (a esquerda) dança com Lila (a direita) na 1ª temporada de “My brilliant friend”

Ausência

Elena Ferrante é, na verdade, um pseudônimo. Desde a publicação de A amiga genial na Itália, em 2011, o mundo procura saber quem é a pessoa de verdade por trás dos livros. Prevendo o movimento de curiosidade dos seus leitores, em 1991, Ferrante escreveu uma carta no livro Frantumaglia: “Acredito que os livros, uma vez que tenham sido escritos, não têm qualquer necessidade de seus autores. Se eles têm algo a dizer, vão encontrar cedo ou tarde seus leitores”.

Pessoalmente, acredito que a autora escreve para aqueles que desejam permitir os sentimentos de serem sentidos (a tetralogia napolitana é exemplo disso, não poupando reviravoltas ao longo de seus volumes). Com o passar dos anos, a “febre Ferrante” acabou fomentando a curiosidade acerca da autoria dos sucessos italianos, chegando a apontar alguns nomes. Alguns defendem a investigação sobre a autoria, mas, particularmente, sinto que fazer isso é como se ocupassem o lugar de Gennaro, filho de Lila: a insistência em encontrar alguém que não deseja ser localizado.

Entre Lila e sua criadora, uma semelhança é nítida: a escolha de ser ausente. Em outra entrevista, Elena Ferrante afirma que “não escolhi o anonimato, e sim, a ausência”. Ao longo de todos os livros, é perceptível como Rafaella Cerullo nutre o desejo de sumir daqueles que a conhecem para viver sua própria vida e traçar novos caminhos por meio da abstração; ao ficar velha, a protagonista faz exatamente isso, cortando todas as fotos com sua imagem e desaparecendo com qualquer vestígio que comprovasse que ela já existiu: aquela Lila já não está mais ali. Afinal de contas, ela já esteve ali por inteiro? 

Lila em seu casamento, na 1ª temporada de “My brilliant friend”

Títulos originais: L’amica geniale, Storia del nuovo cognome, Storia di chi fugge e storia di chi resta e Storia della bambina perduta

Recomendação de faixa etária: 18 anos (A18)

Justificativa: Os livros contêm apologia à violência, sexo explícito e uso de drogas.

Gênero: Romance

Por Maria Vital

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