
Invincible, da Amazon Prime Video, é uma animação no estilo dos clássicos super-heróis, inclusive a obra é baseada nos quadrinhos de mesmo nome. Acompanhamos a história de Mark Grayson, sua mãe (Debbie) e seu pai (Nolan), durante a adolescência de Mark, quando ele começa a manifestar seus poderes, advindos da genética “alienígena” do pai. Quando pensamos para além dos personagens principais da trama, podemos encontrar uma subversão de diversos clichês de gênero, como os relacionados ao papel das mulheres dentro de histórias de heróis. Ainda assim, apesar dos acertos importantes, a obra tropeça em estereótipos, no tratamento e criação de suas personagens femininas todo o tempo nos quadrinhos, e vemos um movimento contrário dentro da animação. Mesmo com essas diferenças, esta crítica se refere somente à adaptação animada da série de quadrinhos, e não ao material original (HQs).
A série, traduzida como “Invencível” no Brasil, critica o patriarcado ao explorar os efeitos nocivos do poder sem controle, especialmente através do personagem Omni-Man, interpretado por Nolan Grayson, o pai de Mark (o Invincible), que performa um análogo do Superman encarnando a masculinidade tóxica e a influência destrutiva das estruturas patriarcais. A série desafia as narrativas tradicionais de super-heróis justamente ao retratar as consequências devastadoras das ações de uma figura poderosa, tanto em escala pessoal quanto global, e ao destacar a vulnerabilidade escondida sob uma fachada de invencibilidade.
A natureza corrosiva do poder sem controle
Omni-Man, apesar de sua fachada heroica, revela uma natureza brutal e destrutiva, alimentada por uma ideologia patriarcal (viltrumita), que valoriza o domínio e o controle dos outros planetas. As ações de Omni-Man, particularmente o ataque ao seu filho e a devastação do planeta, são a prova das consequências do poder sem controle. Essa tentativa de subjugar a humanidade, justificada por sua força e longevidade, evidencia o abuso de autoridade típico de um sistema patriarcal.
Quando a obra subverte essa narrativa típica de super-heróis, ao retratar o lado sombrio do heroísmo e o potencial que aqueles com grande poder têm para causar danos imensos, questiona a ideia de uma dicotomia clara entre heróis e vilões, sugerindo que mesmo aqueles destinados a proteger podem ser movidos por forças destrutivas e ter interesse maquiavélicos. Quando Omni-Man personifica a masculinidade tóxica, priorizando força, domínio e repressão emocional em detrimento da empatia e da vulnerabilidade, muitos glorificam sua existência e o veem como o exemplo a ser seguido, inclusive Mark deseja ser Invencível por aspirar ser como o seu pai. Porém essa incapacidade de se conectar com os outros em um nível emocional e suas explosões violentas destacam os efeitos prejudiciais dos papéis de gênero rígidos e da supressão das emoções nos homens, o que vai para além da ficção, já que é um problema da vida real. Só depois do ataque e posterior abandono de seu pai, Mark entende os perigos do discurso viltrumita que ele promove e defende.
Apesar de seu exterior aparentemente invencível, Omni-Man é, em última análise, vulnerável às suas próprias falhas e às consequências de suas ações. Isso enfatiza o custo humano das estruturas de poder patriarcais, já que ele perde sua família e todo o legado que construiu enquanto defensor da Terra. Ou seja, mesmo aqueles que parecem estar no controle são suscetíveis às mesmas forças destrutivas. Omni-Man se vê privado de retornar à família, por quem tem apego, por medo da reação do exército viltrumita ao descobrir que ele teria falhado em sua missão de conquistar a Terra, e abandonado seu posto como “conquistador”. Isso desafia o retrato tradicional da masculinidade, sugerindo que a verdadeira força não reside no domínio e na agressão, mas na empatia, na vulnerabilidade e na conexão genuína, que foi o que Nolan Grayson conquistou ao se abrir a um relacionamento com Debbie, e ao se tornar pai de Mark.
A série incentiva os espectadores (que estiverem abertos) a questionar os aspectos nocivos da masculinidade patriarcal, a abraçar uma compreensão mais complexa do que significa essa performatividade masculina e a usar o gênero de super-heróis como um veículo para criticar o patriarcado, expondo as consequências destrutivas do poder sem controle, da masculinidade tóxica e da supressão da vulnerabilidade.
As mulheres invencíveis

Personagens como Eve Wilkins e Debbie Grayson têm papel central na trama e não são reduzidas a estereótipos de “namorada do herói” ou “mãe coitadinha”. Atom Eve (Eve Wilkins), especialmente, é uma jovem super-heroína que, como a maior parte delas, não recorre ao tradicional combate físico, buscando soluções mais éticas e sociais para os problemas do mundo. Ela é uma das personagens mais fortes do universo da série, tendo acesso a poderes em escalas atômicas, conseguindo alterar e manusear partículas da forma que quiser, a partir do seu conhecimento avançado em química. Seu uniforme é rosa, tem um símbolo de vênus, apropriado da alquimia, que representa as mulheres, e em volta dele vemos círculos de nêutrons e prótons, simbolizando seus poderes químicos.
O problema? O roteiro faz Eve parecer incapaz de se proteger e incapaz de lutar sem Mark ou os outros Guardiões do Globo (nome da associação de super herois dentro da série). Seu arco de abandonar a equipe e atuar como uma espécie de “heroína social” é um sopro de ar fresco, já que a vemos em uma jornada de transformação e de compreensão sobre si mesma.
Eve é uma das personagens que tem a esfera psicológica mais bem desenvolvida. O tempo todo a vemos na dualidade de ser super poderosa mas falhar em atividades cotidianas; vemos o quanto ela é odiada pelo pai, e o quanto nunca se sente boa o suficiente, apesar de suas tentativas. Vemos Eve se desdobrando pelo respeito e reconhecimento dos outros, e, mesmo tendo um monte de traumas não resolvidos, ela é uma das únicas personagens que parecem se desvencilhar dessa narrativa de coadjuvante e existir separadamente do protagonista, tendo um arco de desenvolvimento muito bem demarcado e pensado, após o começo tenebroso de sua construção enquanto personagem.
A incapacidade de Eve de controlar plenamente seus poderes é justificada no roteiro como uma consequência de traumas passados. Essa limitação, que a impede de reorganizar a matéria viva, funciona como um mecanismo narrativo para que ela não se torne mais poderosa que o protagonista. Contudo, essa barreira é convenientemente superada na terceira temporada (spoiler!), após sua suposta morte e ressurreição. O problema…
Nos quadrinhos, toda vez que Eve renasce, ela utiliza seus poderes para aumentar o próprio corpo, principalmente seu busto, tronco e nádegas, o que agradou imensa parte masculina do fandom, e isso foi adaptado para a série também. Apesar desses erros pontuais de adaptação (tem coisa que é melhor não aparecer), com o desenrolar da série entendemos muitas das camadas de Eve, que ganha, pelaAmazon Prime, uma obra própria (Atom Eve), desenvolve inúmeros aspectos fora da série Invincible e humaniza profundamente a personagem.
Já Amber, a ex-namorada de Mark antes de ele se relacionar com Eve, embora não seja uma personagem com poderes, é retratada como inteligente, perceptiva e crítica. Ela não está disposta a ser uma coadjuvante na vida do super-herói e exige honestidade e respeito, o que desafia a narrativa clássica da “garota que espera”, passiva e dependente. Isso vai na contramão da história de Debbie, mãe de Mark. Todos aguardavam grandes feitos dessa personagem, e ela foi ainda mais aplaudida por ter sido adaptada como uma mulher negra, diferentemente dos quadrinhos.
Infelizmente, o roteiro não deu espaço para Amber evoluir, transformando-a em um mero degrau que Mark teria que atravessar durante sua ascensão como super-herói. Essa escolha retira a profundidade da personagem e cria uma atmosfera entediante ao seu redor, o que infelizmente levou parte do fandom a detestá-la, abrindo precedentes para ofensas misóginas e, principalmente, racistas.
Essa construção de personagem ecoa diretamente as teorias da feminista Teresa de Lauretis. Em seus estudos sobre as “tecnologias de gênero”, De Lauretis argumenta que o cinema e outras narrativas frequentemente posicionam a mulher não como um sujeito com sua própria jornada, mas como um “obstáculo” ou um “espaço”, até mesmo parte da paisagem, que o herói masculino precisa atravessar para cumprir seu destino. Amber se torna exatamente isso, o território para o desenvolvimento de Mark. Ao ser reduzida a uma função na jornada dele, sua personagem perde agência própria e se torna alvo fácil para a frustração do público.
É nesse ponto que uma personagem, inicialmente criada para introduzir amor e afeto na vida de Mark, se desvirtua e se transforma em um palanque para discursos de ódio. A reação do fandom transcende a mera crítica a um roteiro fraco e revela uma adesão afetiva a uma estrutura narrativa que desumaniza a personagem feminina.
Originalmente concebida para evitar que Mark se tornasse uma força destrutiva e se considerasse superior à raça humana (um ponto que, por si só, já denota falhas no roteiro e merece críticas), a personagem acaba por se converter em um catalisador para contínuos debates sobre representatividade em séries e, lamentavelmente, para discursos racistas.
Diante desse cenário, as seguintes perguntas se tornam inevitáveis e urgentes:
Como o fascismo se alimenta de afetos distorcidos e instrumentaliza a emoção para suas próprias agendas?
De que maneira o ódio é tão facilmente direcionado a uma personagem que ousa não cumprir o papel de coadjuvante silenciosa, desafiando expectativas?
Por que o feminismo, em sua busca por dar protagonismo a essas personagens e a grupos marginalizados, é tão temido por regimes autoritários?
Qual o papel crucial da linguagem e da memória que utilizamos para construir (ou destruir) essas figuras na incessante disputa por narrativas mais justas e equitativas?
Fascismo e patriarcado
Conforme aponta Cristine Krüger Kapustan na recente newsletter do Instituto Racionalidades, a política contemporânea tem trocado a razão crítica pela adesão emocional a discursos autoritários. Esse fenômeno, ligado ao patriarcado e ao neofascismo, opera de forma sutil: em vez de fardas e marchas, ele se manifesta nas redes sociais, em piadas e na normalização da violência, usando a mentira como estratégia para manipular medos e inseguranças. A adesão a essa “onda conservadora” não é, portanto, racional, mas afetiva.
Nesse cenário, o feminismo se posiciona como um antagonista radical. Enquanto o autoritarismo se baseia na imposição e no silenciamento, o feminismo propõe uma prática política de cuidado, escuta e reconstrução de laços. É justamente por desafiar essa cultura do abandono que o movimento é tão combatido por quem defende o retrocesso.
Omni-Man, o pai de Mark, encarna uma forma extrema de masculinidade tóxica: autoritária, violenta, sem empatia, com um discurso totalmente eugenista. E a crítica ao personagem envolve justamente essas estruturas patriarcais e colonizadoras. Acredito que esse é um dos melhores e piores pontos da série. Assim como em The Boys, também da Amazon Prime, muito da crítica se perde dentro do fandom, que começa a glorificar as atitudes grosseiramente exageradas e categoricamente caricatas dos personagens.
Em The Boys, Homelander se torna, para a visão de alguns homens, uma espécie de sábio líder, e parte dos fãs da série espelha suas atitudes e psicologia, como o “Complexo de Deus” que ele possui e suas tendências abertamente nazistas também. A crítica é escancarada, não vemos demonstrações sutis, o que ajuda a traçar alguns paralelos entre esses dois fandoms, já que uma parte do público que assistiu a The Boys pode se interessar pelo conteúdo de Invincible e vise-versa.

Essa desconstrução da figura do “pai heróico” serve como um comentário relevante sobre a forma como a masculinidade tradicional pode se tornar perigosa e destrutiva, já que o Omni-Man esteve ausente durante grande parte da infância de Mark, e só começou a se interessar em cuidar do filho durante a fase em que o protagonista começa a desenvolver seus poderes viltrumitas. Depois que Nolan Grayson começa a se afeiçoar por sua família terráquea, ele começa a questionar e se opor ao modelo de conquista interplanetária que os Viltrumitas são treinados para fazer, o que só acontece muito tardiamente na série e só reforça o caráter coletivo de lavagem cerebral que o patriarcado efetua.
Nolan só reproduz os padrões de masculinidade tóxica, nunca refletindo o quanto a necessidade de utilização dessa ultraviolência e da subjugação de outras espécies é problemática. Isso é ainda mais emblemático quando, em um acesso de fúria, Omni-Man comete assassinatos em massa para utilizar de exemplo com Mark, demonstrando a “inferioridade” da raça humana, e o quanto o sangue viltrumita deles era superior e deveria ser celebrado/adorado. Mark se recusa a aceitar essa narrativa, e decide se opor à possível invasão viltrumita, que iria ocorrer a partir da conquista daquele planeta por Nolan. Com isso, o pai começa a esmurrar o filho, em uma tentativa de fazê-lo se dobrar às suas vontades a partir da violência.
Durante a cena em que espanca Mark, ele faz um monólogo sobre a longevidade, vitalidade e necessidade de expansão viltrumita:
“Por que você me fez fazer isso? Você está lutando para ver todos ao seu redor morrerem! Pense bem, Mark! Você sobreviverá a todos os seres frágeis e insignificantes deste planeta. Você viverá para ver este mundo virar pó e ser levado pelos ares! Todos e tudo o que você conhece desaparecerá! O que você terá depois de 500 anos?”
“Você pai, eu teria você.”
Após esse momento, um verdadeiro divisor de águas na obra, vemos Mark fazendo de tudo para não se assemelhar à imagem do pai e para escapar do destino – quase inescapável – de se tornar o guerreiro exemplar viltrumita como seu pai idealizou. Essa realidade é a única em que Mark foge do cruel final da Terra conquistada e explorada pela nação alienígena viltrumita, já que existem realidades paralelas em que pai e filho se juntam para dividir e conquistar.
Onde Invincible tropeça
O que salta aos olhos é o subaproveitamento das personagens femininas, já que apesar do destaque de Eve, muitas personagens femininas acabam sendo mal exploradas ou definidas principalmente a partir das suas interações com outros homens. A própria Amber acaba perdendo profundidade e atuação direta à medida que a série avança, ou seja, a narrativa ainda gira, majoritariamente, em torno de conflitos masculinos. Mesmo acertando algumas vezes na inclusão e na apresentação de representatividade racial e sexual, ainda é bastante centrada em protagonistas brancos e heterossexuais. Mulheres negras, por exemplo, aparecem pouco e quase sempre em papéis secundários, como Amber, que só existe para namorar temporariamente Mark, e para fazê-lo refletir sobre o quanto sua mãe teve uma maternidade sozinha.
Debbie, por sua vez, foi abandonada durante todo o puerpério para que Nolan pudesse cuidar de ameaças universais, ou seja, os problemas dela sempre ficavam em segundo plano, já que ele tinha que assumir o papel de super-herói do mundo, Omni-man, e não de pai. Ela é chamada de “mascote” por Nolan, e tratada como uma espécie de animal de estimação com data de validade. Após sua morte, o plano de Nolan era recomeçar o processo de conquista e integração dos viltrumitas em outro planeta.

Stand ready for my arrival, worm! (Se prepare para a minha chegada, Verme!).
Conquista e Mark se enfrentam em um confronto violento que definirá o futuro da humanidade.
A série é extremamente violenta, o que é esperado de uma série de animação com super-heróis e super poderes, mas em certos momentos a violência contra personagens femininas parece gratuita ou serve mais para reforçar o trauma de personagens masculinos do que como comentário ou crítica social. Eve fica completamente desfigurada depois de lutar com Conquista, durante a terceira temporada, e eu acredito que não seria necessário mostrá-la dessa forma.
Outra super-heroína que tem o corpo o tempo todo destruído é a Dupli-Kate, personagem amplamente odiada pelo fandom por ser uma mulher adúltera e traíra. Ela começa a ser odiada quando Rex trai Atom Eve com ela, porém quando ela trai Rex com o Imortal, seu comportamento é amplamente repreendido por todos, mas Rex é perdoado por seus atos após um arco de redenção – e é até ovacionado pelos espectadores após seu sacrifício final na terceira temporada.
Essa escolha pode acabar reforçando a ideia de que homens podem errar e recomeçar, mas que mulheres não têm o mesmo direito, e que o sofrimento das mulheres é apenas um pano de fundo para o crescimento dos homens, principalmente após ataques violentos desferidos contra elas. Ver Eve totalmente machucada fez com que Mark tivesse mais vontade de lutar contra Conquista, e a morte de Dupli-Kate se tornou pano de fundo para a vingança que seu irmão começou a planejar.
O pior de todos os exemplos é Anissa, uma das guerreiras viltrumitas, que estupra Mark, dando à luz seu filho de nome parecido, Marky. Ela o derrota em um duelo, comete um crime hediondo, não se arrepende, dá à luz um filho de Mark e após isso renuncia aos seus hábitos viltrumitas e vive uma vida normal na Terra. Que lição aprendemos com isso? Qual a necessidade desse plot ser desenvolvido e adaptado para a série de animação?
Invincible está um passo à frente na desconstrução de arquétipos masculinos do gênero de super-heróis e oferece momentos significativos de protagonismo feminino. No entanto, peca terrivelmente em inúmeras subtramas, que ainda estão longe de uma narrativa verdadeiramente acolhedora e que explicitamente defendam os direitos das mulheres, principalmente quando pensamos no fato de que os quadrinhos estão muito longe dessa versão recriada pela Amazon Prime.
Falta dar às mulheres mais espaço e complexidade para existirem além dos conflitos masculinos. Falta pensar em boas construções de narrativas femininas para além da vida do protagonista. Podemos reconhecer o potencial da série e torcer para que, nas próximas temporadas, Invincible se torne não só uma crítica à masculinidade, mas também um espaço mais abrangente e reflexivo que dê conta de criticar tudo aquilo que propõe contrariar dentro do material original.
Por Sophia Helena Ribeiro
Ficha técnica:
Título Original: Invincible
Onde Assistir: Amazon Prime Video
Classificação Indicativa: 16 anos (A16)
Classificação da autora: 18 anos (A18)
Justificativa: A série retrata violência extrema e linguagem explícita
Gênero: Animação/Ação
Baseado em: Série de quadrinhos de mesmo nome.
