Quem pode falar de crime ambiental em Mariana?

Uma xilogravura vibrante de J. Borges, intitulada "O Cão no Jardim". A imagem apresenta um cachorro estilizado, predominantemente preto com padrões de linhas finas que criam textura, sentado em meio a árvores também estilizadas. Duas árvores maiores, com folhagens verdes escuras pontilhadas, ladeiam o cão, enquanto uma árvore menor com folhagem similar está à direita. Elementos amarelos brilhantes, como o tronco de uma árvore e as pernas dianteira e traseira do cachorro, contrastam com o preto e o verde. A obra é contornada por uma borda decorativa com linhas diagonais brancas sobre um fundo preto. Na parte inferior, o título "O CÃO NO JARDIM J. BORGES" está escrito em letras maiúsculas brancas.
Xilogravura G – O Cão no Jardim – de J. Borges

Em Mariana, a história se repete como farsa. Passear pela cidade é respirar a grandiosidade de um passado barroco, com suas igrejas folheadas a ouro e suas ladeiras que contam histórias de arte, fé e, principalmente, de exploração. Hoje, um novo brilho se mistura ao dourado das igrejas: o brilho acetinado das placas de patrocínio. “Esta obra de restauro foi um presente da Vale”. “A recuperação deste patrimônio foi possível graças à Fundação Renova”. “Patrocínio Cultural: Samarco”.

A cultura com crachá, a arte carimbada pelas mesmas corporações cujas atividades redefiniram a paisagem e a vida da região, é bem-vinda, e até mesmo celebrada. É a reparação que se pode ver, fotografar e inaugurar com grandes festas em salões vazios. É o perdão comprado em suaves prestações de marketing cultural, em que a mesma mão que assina o cheque para restaurar um anjo barroco de Aleijadinho é a que permitiu que uma onda de rejeitos soterrasse distritos, vidas e o futuro do Rio Doce.

Essa intervenção é nobre. É a empresa “devolvendo à comunidade” (devolvendo o quê? Ninguém fala ao certo). A poeira tóxica da mineração assenta, não somente nos móveis das casas, e tampouco nas ruas que passamos, mas nos pulmões de quem respira essa poeira tóxica. E quando este pó assenta, em seu lugar surge o pó de ouro da cultura restaurada. Ninguém questiona a legitimidade dessa troca. Ninguém vê como um problema a logo da mineradora estampada na fachada de uma igreja do século XVIII. Isso não é uma intervenção agressiva. Isso é progresso, é responsabilidade social. Tudo em nome do progresso em primeiro lugar, e devolver para a comunidade? Só quando for extremamente necessário.

Mas, ai do artista que estende um simples barbante numa praça PÚBLICA para expor suas xilogravuras. Essa arte de resistência, que há séculos ouve a voz do povo com suas folhas de papel impressas na força do braço e do talento. Esse, sim, é o verdadeiro problema!!

O varal de xilogravuras do artista Bruno Miné, com suas crônicas visuais, é uma afronta. É uma “intervenção indevida”, e agride o espaço público. Polui visualmente o cenário histórico que o dinheiro da mineração tão generosamente ajuda a “preservar” — e descaracterizar, vide a última reforma da Praça Gomes Freire bancada pela Renova. O varal não tem licença, não tem edital, não tem placa de patrocínio. Seu único “carimbo” é o da autenticidade. Varal esse que expõe patrimônio imaterial, forma escolhida de exposição que vai de acordo com a estética e a expressão artística de Bruno.

E aí reside a suprema ironia de Mariana e também de Ouro Preto. A intervenção que destrói, que mata, que polui um ecossistema inteiro, gera o lucro que depois financia uma cultura “limpa”, oficial e bem-comportada, e essa cultura, por sua vez, serve para legitimar as mesmas empresas e para apagar a memória do crime. É um ciclo perfeito de autolavagem, (lê-se GreenWashing), em que a arte se torna cúmplice do silêncio.

Enquanto isso, a arte que grita, que lembra, que resiste no varal, que busca sobreviver, essa é a que precisa ser fiscalizada e contida. Ela é perigosa. Não por ferir a estética da praça, mas por ferir a narrativa conveniente de que tudo foi reparado, de que a vida segue em seu brilho patrocinado, a vida em que um fiscal dá carteirada em artistas só pelo prazer de diminuí-lo, e (supostamente) estaria tudo bem.

No fim, entre o ouro das igrejas e a lama dos rios, a questão é sobre qual patrimônio se quer preservar. O que pode ser comprado e restaurado para aplacar a consciência, ou o patrimônio imaterial da memória e da verdade? Em Mariana, um varal de xilogravuras é visto como um problema porque, ao contrário das intervenções corporativas, ele não decora a paisagem, ele a revela. E em terras onde a memória foi afogada, um simples varal de arte é um ato de teimosa ressurreição.

A ironia é um veneno que escorre lento pelas ruas da cidade, um gosto amargo que o povo de Mariana conhece bem.

No dia 14 de Junho, o artista urbano Bruno Miné, de 30 anos, fez a denúncia em suas redes sociais após ter sido abordado por um fiscal à paisana da Prefeitura de Mariana, no Jardim (no centro histórico), por supostamente ter praticado “crime ambiental” ao montar um varal de xilogravuras na praça pública. A situação gerou polêmica entre os moradores da cidade, vitimada por uma das maiores crime-tragédias ambientais do Brasil – o rompimento da Barragem de Fundão.

Enquanto a burocracia municipal se ocupa em proteger a paisagem de uma inofensiva intervenção artística, a verdadeira ferida, a chaga aberta que nunca cicatriza, continua a ser ignorada. O verdadeiro crime ambiental, aquele que soterrou territórios inteiros, matou 20 pessoas e envenenou o Rio Doce com uma lama tóxica e eterna, esse parece não chocar tanto as autoridades.

O rompimento da barragem de Fundão, da Samarco, uma joint-venture da Vale e da BHP, foi uma tragédia anunciada. Um “acidente” que, na verdade, foi o resultado de uma negligência criminosa, da ganância que coloca o lucro acima da vida e do meio ambiente, ou seja, um desastre-crime. A lama da mineração, essa sim, desfigurou o patrimônio histórico e cultural de uma região inteira, um patrimônio que não se resume ao físico tangível, mas sim ao que pulsa na vida das pessoas, nos sentimentos dela, na memória, e no rio que era o sustento e alma de tantas comunidades.

No Brasil, a Lei de Crimes Ambientais existe somente no papel, para punir quem destrói a natureza. Prevê multas, até mesmo reclusão para os responsáveis, mas na realidade, assim como a lama da Vale, ela é turva e movediça. Dez anos se passaram desde o rompimento, e a impunidade ainda reina, acordos milionários como o da repactuação são firmados, mas a reparação integral dos danos, a recuperação do meio ambiente e a punição dos verdadeiros culpados parecem uma miragem nesse deserto que, a primeira vista, parece um oásis.

A Vale, gigante da mineração, tem um histórico de desastres ambientais que vai de Mariana a Brumadinho. E a cada nova tragédia, a mesma ladainha: notas de pesar, promessas de ajuda, e uma máquina de publicidade que trabalha para limpar a imagem da empresa, enquanto a lama continua a contaminar tudo o que toca. Assine o PID, tá acabando o tempo, hein! Última oportunidade, quem não assinou bota o dedo aqui, que já vai fechar.

É por isso que a cena do artista Bruno Miné sendo constrangido em Mariana é mais do que uma simples notícia, é um cruel retrato de um país que inverte valores, que se preocupa com o “cisco no olho enquanto a trave lhe cega”. Um país onde a arte que questiona é tratada como crime, enquanto o crime que destrói é tratado como negócio.

O ocorrido anda, fala, e cheira a racismo. A clara censura a Bruno, um artista pardo, deixa o amargo gosto do não pertencimento da arte com o espaço que deveria integrar. O Jardim só poderia ser palco para artes domesticadas, artes aprovadas e licenciadas, principalmente se vierem com um selo da Vale. Não tem espaço para um artista independente apresentar seu estilo. Só a branquitude cabe no Jardim. E com isso, o apagamento histórico da cultura negra e das diferentes identidades das regiões brasileiras, que são plurais em sua natureza, continua reafirmando as injustiças sociais.

Uma imagem contendo um poema em duas colunas. A coluna da esquerda apresenta o poema original em francês, enquanto a coluna da direita exibe sua tradução para o português. O poema, que começa com "Écoutez, monde blanc" e "Escuta, mundo branco", fala sobre temas como história, trabalho forçado e a experiência de pessoas negras, mencionando elementos como o sangue negro, navios negreiros, plantações de algodão e cana-de-açúcar, matadouros de Chicago e o Congo-Oceano.
– René Depestre, Cap’tain zombi (1967)

A arte, ao contrário da mineração predatória, não mata, não destrói, não deixa um rastro de contaminação e dor. A arte incomoda, provoca, faz pensar. E talvez seja esse o verdadeiro “crime” do artista de Mariana: o de lembrar, com sua xilogravura, que a maior ameaça ao patrimônio e ao meio ambiente não é a arte que ocupa as praças, mas a ganância que literalmente move montanhas e devasta vidas. E essa, a arte de ignorar um crime, o Brasil parece dominar com uma perfeição assustadora.

Por Sophia Helena Ribeiro

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