
A cultura nos ajuda a compreender um pouco sobre como as identidades e a performatividade de gênero se constroem e se manifestam em espaços online, como em Haru. O filme é um romance feito no Japão, em 1996, por Yoshimitsu Morita, diretor e roteirista. Vencedor dos prêmio de Melhor Atriz (Eri Fukatsu) e Melhor Roteiro no 18º Festival de Cinema de Yokohama (1997), conta a história de dois jovens, Noboru Hayami e Mitsue Fujima, que se conhecem por meio de um fórum sobre filmes. Eles acabam se apaixonando à distância, desafiando noções convencionais de autenticidade e conexão interpessoal.
Noboru é um rapaz que costumava jogar futebol americano na escola, mas acabou deixando o esporte de lado depois de sofrer uma lesão nas costas. Em consequência disso, acompanhamos sua rotina como um funcionário comum na grande Tóquio. Já Mitsue é uma moça traumatizada pela perda do seu ex-namorado, que muda constantemente de emprego na sua cidade, Morioka. Ambos se conheceram utilizando nomes e identidades diferentes: “Haru” (Noboru) e “Hoshi’ (Mitsue). De agora em diante vamos nos referir aos personagens por meio do nome nos seus perfis.
No começo do filme, vemos que Haru ama conversar sobre filmes com sua namorada e fazer passeios no cinema, enquanto acompanhamos Hoshi ser perseguida por um amigo próximo do seu ex. É nesse contexto de vida que ambos se conectam, sendo que Hoshi se apresenta no fórum por um perfil que se identifica no gênero masculino. O relacionamento entre os dois começa a crescer sem que cada um revele suas verdadeiras faces, compartilhando conversas sinceras sobre suas preocupações e desafios diários em trocas de e-mails. E, por mais que Hoshi revele que fingiu ser um homem, a confiança entre ambos acaba não entrando em colapso por causa disso.

A dinâmica dos relacionamentos na web começou na década de 90, no início da era da internet, proporcionando às pessoas se aproximarem e se conectarem de diferentes localidades. Sherry Turkle, professora de Estudos Sociais de Ciência e Tecnologia no Massachusetts Institute of Technology, explica que nesse tipo de relação podemos nos apresentar como queremos e atuar de acordo com o que outro espera de nós, sem nos comprometermos com uma identidade fixa. Naturalmente, as pessoas vão moldando e expressando sua identidade ao longo da vida e, de acordo com Erik Erikson, psicólogo e psicanalista, o desenvolvimento dessas identidades vai se ajustando por meio das experiências sociais e da autorreflexão dos indivíduos.
Por assumirem pseudônimos que não refletissem suas identidades no offline, questões sobre a autenticidade e a construção das relações de ambos, baseadas nas suas personas online, podem ser levantadas. Neste filme, Hoshi escolhe uma identidade no gênero masculino para se proteger do assédio online, descrito pela personagem como algo comum quando descobrem se tratar de uma mulher por trás da tela. danah boyd, socióloga estadunidense, esclarece que essas dinâmicas refletem e amplificam as complexidades que já existem nas relações no offline, principalmente ligadas ao gênero.
A partir dos estudos de Judith Butler, filósofa estadunidense pós-estruturalista, podemos compreender que esta vulnerabilidade à qual as mulheres são expostas reforça regimes de poder, onde atributos de gênero são utilizados para manter opressões e violências contra mulheres. Com isso, o espaço disponível no fórum é um local onde Hoshi pode experimentar sua identidade de maneira que a autenticidade passa de um conceito absoluto para que a personagem possa se tornar visível no ambiente virtual.

E para confirmar que ambos eram “pessoas reais”, uma viagem de trem que Haru realiza a negócios foi o momento encontrado para um breve encontro. Ambos seguravam uma câmera, gravando enquanto acenavam para o outro com um lenço. Haru de dentro do trem e Hoshi em um ponto específico da estrada no lado de fora. Ao saber que Haru estava conversando com sua irmã, que se apresentava como pseudônimo Rose, Hoshi para de se comunicar com ele por um tempo, dando-se conta aos poucos de que as interações que tinham acabavam lhe servindo de apoio emocional. O reencontro, agora em carne e osso, acontece em uma plataforma na estação de Tóquio, onde Mitsue e Noboru finalmente materializam a existência um do outro.
Haru (1996) é um filme que demonstra a complexidade das identidades e suas construções, e como as conexões humanas desenvolvidas nas plataformas digitais podem ser profundas e significativas para além dos pseudônimos escolhidos. É pela jornada vivida por Haru e Hoshi que compreendemos a autenticidade dos sentimentos compartilhados, de maneira que a busca de conexões genuínas transcendem o espaço, o tempo e as tecnologias.
Por: Natalia Lima Amaral
Serviço:
Título Original: ハル
Onde Assistir: Mubi
Duração: 1h 58m (118min)
Classificação Indicativa: –
Classificação da autora: Livre
Gênero: Romance/Drama
Referências
BOYD, danah. It’s Complicated: The Social Lives of Networked Teens. New Haven: Yale University Press, 2014.
BUTLER, Judith. Vulnerabilidad corporal, coalición y la política de la calle. Nómades, Bogotá, n. 46, p. 13-29, jun. 2017.
ERIKSON, Erik H. Identity: Youth and Crisis. New York: Norton, 1968.
TURKLE, Sherry. Alone Together: Why We Expect More from Technology and Less from Each Other. New York: Basic Books, 2011.
