
Rever Último tango em Paris depois de mais de duas décadas teve um sabor amargo. O filme continua lá, mas mudou. E eu mudei. Agora, pude perceber com mais clareza como o longa de Bernardo Bertolucci, de 1972, se estrutura de fato como uma dança. A alusão do título não é apenas à sequência final, mas também à estrutura poética da obra, com movimentos de aproximação e baile entre Jeanne (Maria Schneider) e Paul (Marlon Brando) pela Paris dos anos 1970, até a separação trágica no ato final, como um tango.
Mas não está aí a questão, e nem foi por isso que exibimos o filme na nossa mostra Toda nudez será castigada. Último tango… é daqueles filmes que nos convidam – demandam, de uma perspectiva gendrada – a pensar a crítica de dentro para fora e seu reverso. No século XXI, com tudo que as teorias feministas do cinema nos ensinaram sobre o olhar no cinema há 50 anos, com tudo que sabemos sobre as condições de produção violentas a que a atriz francesa Maria Schneider foi submetida, é possível olhar para o filme de Bertolucci apenas esteticamente?
Obviamente, essa é uma pergunta retórica e não pretendo discutir outras possibilidades críticas além daquelas que animam o Ariadnes. O filme é marcado por uma extrema assimetria entre a exposição dos corpos da jovem Schneider, que é desnudada e tem sua erotização posta em cena a partir do olhar desejante e para o deleite masculinos, e um Marlon Brando decadente, cansado, derrotado.
Sim, é o personagem dele. Mas também não é. É a medida pela qual o cinema hegemônico, e o cinema de autor, construíam as relações de desejo na grande maioria dos filmes, sejam comerciais ou “de arte”: de um lado um sujeito agente de desejo; do outro, um objeto de desejo à disposição do olhar masculino dentro da tela (o olhar do personagem de Brando), fora da tela (o espectador, no masculino) e da câmera (do diretor).
Talvez por isso as mulheres em nossa sessão tenham se incomodado tanto com a repetição da lógica cênica em que Maria Schneider está nua em pelo e Brando, vestido (ele nunca aparece sem roupa). O filme não propõe nos identificarmos com ela. Jeanne/Maria está ali, sendo exibida (não exibindo-se). E, ainda assim, a identificação é inevitável, porque essa mulher sobrevive ao olhar masculino, como tantas de nós.
É impossível, também, não me deslocar do filme e discutir a cena de estupro, figurado, que já é perturbadora pelo que mostra, pelo modo como mostra. Mas é muito mais perturbadora pelo que Maria Schneider contou ao mundo anos depois: a cena foi filmada à revelia dela, sem seu consentimento; não estava no roteiro. A atriz não sabia o que seria captado ali, no chão do cenário do apartamento; que ela seria submetida a uma simulação de estupro anal, aos 19 anos, por um astro hollywoodiano, sob o olhar de uma equipe de filmagem.

A atriz contou que se sentiu humilhada e um pouco violentada por Brando e Bertolucci – exatamente a sensação que o diretor queria extrair dela (em nome do cinema?), por isso o descaso em simular o estupro de uma jovem atriz em seu primeiro papel de protagonista. Em vez de consolá-la após a filmagem, o co-protagonista (Brando teria sugerido o uso da manteiga como lubrificante) lhe disse para não se preocupar, era só um filme; mas a manteiga era real; as lágrimas dela eram reais; o impacto devastador da experiência foi real para ela.
Cansada das justificativas masculinas para agredir mulheres narrativamente, cenicamente, visualmente, fui assistir a Meu nome é Maria (2024), cinebiografia da atriz dirigida por Jessica Palud, em busca de algo diferente; em busca de Maria Schneider. A cena está lá, claro – era inevitável, explicou a diretora em entrevista. Mas de outra perspectiva: aqui, não há desculpas para não se incomodar e perceber o que estava acontecendo. Schneider foi violada diante de várias testemunhas (quase todos homens), que olhavam cúmplices e omissas enquanto a câmera registrava.
Meu nome é Maria é um filme comedido, pontual, de narrativa irregular. Revê o próprio cinema à luz da história. E tenta fazer justiça tardia a uma atriz que foi sugada pela misoginia, por homens em quem confiava e que teve a vida e a carreira negativamente marcadas pelo filme de Bertolucci – enquanto ele e Brando se beneficiaram financeira e profissionalmente.
Anamaria Vartolomei, que interpreta Schneider em Meu nome é Maria, foi respeitada durante o processo, que contou com um coordenador de intimidade para recriar a cena. Matt Dillon, que vive o Paul de Brando com surpreendente semelhança, parece ter respeitado a atriz. Essas medidas não anulam a violência do momento, conforme Vartolomei afirmou em entrevistas, porque encenar um estupro nunca é impune.
A cinebiografia nos oferece um outro ponto de vista, feminino. O que nos mostra é o pânico de uma mulher no chão, de barriga para baixo, tendo de ficar no personagem enquanto o corpo dela, real, não o corpo imaginário de Jeanne, é submetido àquela violência. Por isso, mesmo tendo visto Último tango em Paris diversas vezes, é o olhar desesperado da mulher em primeiro plano de Meu nome é Maria que volta à minha mente.

Por Karina Gomes Barbosa
Serviço:
Último tango em Paris
Título original: Ultimo tango a Parigi
Onde assistir: Prime Video (aluguel ou compra)
Gênero: Drama
Temas: Estupro, violência, sexo
Classificação: 14 anos (A14)
Nossa classificação: 14 anos (A14)
Justificativa: O filme contém representação de um estupro, nudez frontal feminina, violência com arma de fogo e misoginia.
Meu nome é Maria
Título original: Maria
Onde assistir: AppleTV+ (aluguel ou compra)
Gênero: Drama biográfico
Temas: Estupro, violência
Classificação: 14 anos (A14)
Nossa classificação: 14 anos (A14)
Justificativa: O filme contém representação de um estupro, uso de drogas e violência.
