Na reta final do remake de Vale Tudo, há duas grávidas. Uma delas, nossa esquerdista resistência favorita, a chérie Solange Duprat espera gêmeos do esquerdomacho Afonso Roitman. Para além das absolutamente inoportunas publicidades (os “merchans”) da personagem – promovendo sabão em pó depois de saber que o cunhado dado como morto está vivo etc. -, quero falar aqui do modo como a trama construiu essa gravidez.
Em resumo, como uma versão comédia mórbida da gestação de Rosemary Woodhouse, interpretada por Mia Farrow no clássico de terror O bebê de Rosemary (1868), do declarado culpado por abuso sexual Roman Polanski.
Primeiro, a mulher, que é uma produtora de sucesso, independente, decidiu que gostaria de ser mãe. Sem um parceiro ou parceira estável, começou a pensar em inseminação. Pediu a seu melhor amigo e roomate, Sardinha – um ato absolutamente normal e corriqueiro na vida de dois adultos amigos –, para ser o doador do material genético. Foi recebida com um espanto quase vitoriano do outro, como se ela estivesse propondo um crime grave.
Depois, quando Solange começou a olhar banco de doadores de esperma, pesando características, desejos, expectativas, passou a ser julgada não apenas por Sardinha, mas por Renato, seu chefe e ex-namorado, que deixou claro desde o início da trama (quando a atuação permite deixar algo claro…) não querer filhos, não curtir crianças etc.

Renato se ofereceu para ser pai do filho da ex – sem ter sido convidado –, numa invasão sem noção do espaço privado e da autonomia dessa mulher sobre seu corpo e suas escolhas. E então, numa reviravolta, Solange se descobre grávida pelos métodos ancestrais, depois de uma noite casual com Afonso.
Aos primeiros sintomas, Solange ganhou broncas de Sardinha por estar à flor da pele. Precisou se desculpar pelo humor instável, sem nenhuma empatia masculina. Quando demonstrou aumento de apetite, foi repreendida no ambiente de trabalho por estar comendo os biscoitos corporativos. Precisou se explicar. Pressionada, deu a notícia ao chefe, que se ofereceu para acompanhá-la no ultrassom – afinal, que pecado uma mulher ir sozinha, desamparada, ver seus fetos, né?
(Nota lateral sobre a heterossexualidade compulsória: quando eu engravidei, os formulários de maternidade e de “cursos de gestante” traziam os seguintes campos: “Nome da mãe” e “Nome do marido”. Pois é.)
No exame, Solange descobre que está grávida de gêmeos, e Renato fica exultante. Tão exultante que, quando a médica parabeniza o “papai” pela novidade, ele não a corrige ou desmente. Assume o papel, diante de uma Solange estupefata, mas sem reação. Afinal, deitada na maca, com gel na barriga, estava num dos muitos momentos de vulnerabilidade física em que a gravidez coloca mulheres e pessoas que gestam.
Ela o cobra depois, indignada, e ele mal pede desculpas. Se justifica, estava feliz (devia estar pensando que o exagero já era fruto dos hormônios descontrolados). Quando Solange conta a novidade a Sardinha, ele fica felicíssimo com os futuros afilhados e, na sequência, tem uma ideia brilhante: fazer um bolão sobre o sexo das crianças, monetizando em cima das projeções de identidade de gênero dos embriões, sem consultar a mãe sobre a relação dela com essas expectativas da cisgeneridade.
Apesar de Solange ter declarado que se trata de uma produção solo, Sardinha a pressionava o tempo todo para revelar a paternidade. Fuçou, caçou pistas, abriu correspondência da amiga, até sacar que o pai biológico é Afonso. Tirou satisfações e demandou que Solange contasse ao pai, que teria o direito de saber… Tudo que uma pessoa no início da gestação precisa: apoio, solidariedade, compreensão e respeito à sua autonomia e suas decisões. A narrativa é que ela estava enganando Afonso e escondendo algo dele.
Não bastasse a narrativa de terror e disciplina sobre os corpos femininos, sua sexualidade e direitos reprodutivos, o tom da trama toda foi de arrepiar. Os eventos foram tratados como momentos leves da novela, divertidinhos, meio como o segundo ato de uma comédia romântica dos anos 1990 datada e esquecível.
(O terceiro ato começou quando os filhos no ventre da mulher serviram de motivo para o doente Afonso querer se curar. E se Solange perdesse os gêmeos? Ele abandonava o tratamento?)
Solange ficou cercada de homens dizendo a ela o que fazer, como gerir o próprio corpo e as decisões sobre sua gravidez, demandando poder de escolha sobre questões que absolutamente não lhes diziam respeito. E olha que esses são seus amigos. E olha que ela nem cogitou, por exemplo, interromper a gestação. Só podemos imaginar o show de horrores que seria.
Por Karina Gomes Barbosa
