Vale tudo?

Como novela e mineração revelam a lógica implacável do capital

Imagem: Equipe Cáritas

Escrita originalmente por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, Vale Tudo teve sua primeira estreia na TV Globo em 16 de maio de 1988. Conhecida por surgir em um contexto transformador do país, a telenovela acompanhou parte do processo de redemocratização após o golpe militar, que instaurou uma ditadura entre 1964 e 1985, e a aprovação da Constituição Federal, em setembro do mesmo ano.

Já em 2025, seu remake, desenvolvido por Manuela Dias e com a colaboração de Sérgio Marques, Márcio Haiduck, Aline Maia, Pedro Barros, Cláudia Gomes e Luciana Pessanha, também presenciou transformações, como o processo que condenou o ex-presidente Jair Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado, ao lado dos réus Alexandre Ramagem, Almir Garnier, Anderson Torres, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira, Walter Braga Netto e Mauro Cid.

Assim como esses fatos, as telenovelas fazem parte da história brasileira e da televisão. Ambas as versões têm em comum os enredos gerais e personagens centrais, que levantam questões éticas e morais como uma tentativa de espelho crítico de seus períodos de exibição. Como apontado pela professora e pesquisadora Maria Immacolata Vassallo de Lopes (2009), além da construção coletiva da memória e da identidade do país, as telenovelas são extremamente relevantes por conta de sua narrativa popular, onde o melodrama atua na articulação de pautas sociais. Neste texto, focaremos na versão mais recente, de 2025.

Imagem: captura de tela do canal da TV Globo no YouTube

No modo como aborda questões sociais contemporâneas, Manuela Dias propõe de forma tímida, e não desenvolve, questões referentes à crise ambiental e à mineração no Brasil. Temos uma indicação disso aos 31 segundos da abertura do remake, quando somos apresentados a um frame muito rápido de máquinas trabalhando em rejeitos de minério (tão rápido que é extremamente difícil fazer uma captura de tela). Essa temática é superficialmente abordada na trama de Marco Aurélio, vilão interpretado por Alexandre Nero. No Instagram, o perfil do autor compartilha a seguinte cena: Marco Aurélio está em uma banheira de espumas com Leila, interpretada por Carolina Dieckmmann, e ela pergunta aonde ele quer ir. “Ainda não sei. Pra baixo da Linha do Equador a coisa só piora. Eu quero entrar pra mineração. O dinheiro não tá por aí mais, voando pelos ares. Tá debaixo da terra. O que tão achando de minério no Brasil…”, responde o vilão.

O remake parece condensar esse espírito de país que se constrói sobre o lucro e apaga suas ruínas com um personagem que transforma a possibilidade de enriquecimento pessoal em sinônimo de sucesso nacional. E, assim, a mineração é tratada apenas pela ótica do capital como uma oportunidade de ascensão para Marco Aurélio por meio de uma renda fácil, não uma ferida aberta na história recente do Brasil. A cena, tal qual as temáticas levantadas na obra de Manuela Dias, não se desdobra em nenhuma perspectiva crítica, tensionamento ou discussão. Virou apenas um corte rápido e fácil para as redes.

Desde o rompimento da barragem de Fundão, da Samarco, e suas acionistas Vale e BHP, em Mariana, em 2015, a mineração deixou de ser apenas um setor produtivo: tornou-se uma referência do colapso ético e político brasileiro. O desastre-crime revelou o custo socioambiental de um modelo baseado na extração predatória, na qual a dimensão ficcional parece ser o próprio real. Em outras palavras, as de Geraldo Carneiro, morador da comunidade de Campinas, “ninguém vai conseguir fazer um filme de terror igual aquele”.

Imagem: Geraldo, registrado pela equipe Cáritas

A novela, no entanto, reencena o velho mito do progresso e do mérito individual, como se o país ainda pudesse sustentar sua moral sobre o mesmo montante que o destrói. A ausência de qualquer referência ao rompimento além dos segundos da abertura escancara como a teledramaturgia continua a falar de corrupção e ambição, sem afirmar que o setor minerário é um projeto de poder onde vale tudo, inclusive enfraquecer a coletividade em territórios minerados, tratados como zonas de sacrifício do projeto capitalista neoliberal. “A comunidade hoje, tipo assim, ela está igual a Samarco pretende: distanciada. Esse ai é o plano da Samarco: que a comunidade não se una. Porque se a comunidade se unir, ela ganha força. E com a comunidade separada, eles (empreendimentos) ganham força”, explica Geraldo.

Já fora da tela, a Operação Rejeito revelou que, longe da zona rural de Mariana, há outras relações bem consolidadas, as quais conectam mineradoras a políticos, autoridades e órgãos reguladores em uma rede que atravessa contratos, favores e decisões legislativas, aprova projetos e decide quem lucra e quem sofre. Essa conjuntura interessada no dinheiro talvez explique por que a novela, mesmo na tentativa de se atualizar, ainda hesita em encarar o conflito de frente.

O Instituto Guaicuy aponta que o rompimento não foi um acidente, mas sim fruto de decisões corporativas moldadas por um sistema que prioriza os ganhos da própria empresa. E quando a questão chega na reparação para as pessoas atingidas, muito se comenta sobre os valores de indenização, como o processo de Mariana na Inglaterra, e o novo acordo do Rio Doce. Mesmo anunciados como um avanço, as negociações e trâmites nesses processos não envolvem nas mesas de deliberações aqueles e aquelas que viviam nas comunidades hoje atingidas, assim como o remake não coloca no centro diegético essas questões minerárias.

Pouco ou nada é perguntado sobre a reparação que vá além de recursos financeiros. O rompimento atravessa e destrói os modos de vida das comunidades tradicionais, mas essa dimensão não é considerada nas propostas de compensação, que parecem falar a língua dos Roitman: números, planilhas, valores monetários. O cotidiano dessas comunidades não se mede por cifras. Ele é tecido por saberes e costumes tão antigos quanto o próprio lugar: a pesca, a roça, os encontros nas praças, as festas religiosas, os quintais produtivos, as comidas, formas de existência que organizam o tempo, os afetos e a memória, e que o dinheiro da exportação dos metais, além de modificar, não consegue recompor.

Imagem: Maria Imaculada, registrada pela equipe Cáritas

Para Maria Imaculada, moradora de Paracatu de Baixo, “a felicidade da gente é ter saúde, conversar com os amigos, passear, sair, encontrar com os amigos pra conversar. E hoje quase todos ficaram em Mariana, quase ninguém quis vir pra aqui [reassentamento coletivo]. Só nós mesmo que tão aqui. Eles pensam que a gente só veve só do dinheiro. A gente não veve só do dinheiro, porque se a gente coloca o dinheiro lá, o dinheiro não vai fazer nada. O dinheiro não vai prantá. O dinheiro compra, o dinheiro compra tudo. Só não compra a felicidade de ninguém”.

Nada disso parece ter valor na lógica do capital. O que não se converte em lucro ou propriedade é descartável. Assim como os Roitman ou o Marco Aurélio Catanhede de Vale Tudo, que vivem no topo da cadeia do poder econômico cercados de luxo, status e viagens internacionais, a elite da mineração se distancia das consequências de suas ações, enquanto as comunidades atingidas veem suas vidas transformadas em mercadoria.

Por: Maria Luísa Sousa e Natalia Lima Amaral
Colaboração: Karina Gomes Barbosa

Referências

LOPES, Maria Immacolata Vassallo de. Telenovela como recurso comunicativo. MATRIZes, São Paulo, v. 3, n. 1, p. 21-47, 2009.

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