Era 2010, quando as imagens de pessoas armadas correndo por uma rua de chão batido em meio à floresta foram exibidas repetidas vezes no RJTV – jornal televisivo diário do Rio de Janeiro, eu tinha sete anos e lembro de crescer amedrontada pelo fantasma do crime que passava na televisão.
Nascida na capital e moradora da baixada fluminense, sempre frequentei a cidade. Me lembro da promessa das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), das entrevistas do então secretário de segurança pública, José Mariano Beltrame – personagem frequente nas edições do RJTV –, da possibilidade de um Rio livre da violência. Apesar disso, tudo ao meu redor gritava o contrário. O medo era crescente: dos assaltos; dos tiroteios; da (in)segurança pública que rondava todo carioca/fluminense ao sair de casa.

De lá para cá foram registradas mais de 240 chacinas na cidade do Rio, segundo dados do Instituto Fogo Cruzado, com mais de 1000 pessoas mortas. A mais recente delas, no dia 28 de outubro, foi considerada a mais letal da história do Rio – e também uma das mais letais do Brasil –, com cerca de 121 pessoas mortas.
Me questiono, como colocou Cecília Oliveira, jornalista e especialista em segurança pública, se a pior operação policial no Rio de Janeiro sempre será a próxima. Quantas vezes será preciso ver corpos ensanguentados? Mães chorando por seus filhos assassinados por quem deveria protegê-los? Quantas vezes mais o Rio de Janeiro precisa da comprovação de que “operações policiais” como essa são estratégias falhas no combate ao crime organizado, ao tráfico de drogas e armas?
É preciso lembrar, inclusive, que por trás desses números existem pessoas, com seus afetos, erros e acertos e, ao lembrá-los (se é que fazemos isso) apenas como “registros”, nos afastamos ainda mais de uma possível solução. A desumanização serve como combustível de vingança e ódio por esse Estado que comemora a chacina, usa foto estarrecedora como troféu. A gente, enquanto público, não só assiste de maneira passiva como se acostuma e naturaliza a violência – das operações, da polícia, da mídia.
Em 2018, quando fui cursar o Ensino Médio na cidade do Rio, comecei a morar na Zona Norte para diminuir o tempo de deslocamento até a escola – que era de três a quatro horas quando morava na baixada. Tinha 14 anos e lembro de escutar tiros quando acordei de manhã para a aula. Volta e meia algum colega faltava justamente por algum tiroteio na região em que morava. A rotina carioca é permeada pelo medo, pela tensão – sobretudo daquelas pessoas que moram em comunidades e áreas historicamente deixadas de lado pelas instituições de segurança pública.
A mídia carioca, por sua vez, faz a escolha deliberada de dizer “bandidos” na cobertura, quando ainda nem se sabem os nomes e identidades dessas pessoas. Hoje, formada em jornalismo, enxergo claramente o papel pedagógico que o jornalismo policialesco, de conflitos, teve durante minha vida, enxergando o que Rita Segato chama de “pedagogias da crueldade”. RJTV (Globo), Cidade Alerta RJ e Balanço Geral (Record), Jornal do Rio (Band) nos dizem diariamente quais corpos são dignos do nosso luto, mas principalmente quais não são e não podem ser.
Jurema Werneck, diretora da Anistia Internacional no Brasil, me disse durante entrevista que “o racismo se move na direção do aniquilamento dos povos indesejados. Então sim, é uma estratégia”. Assim, uma vez que a “política de enfrentamento” ao tráfico ou à violência ocorre por meio de massacres contra a população preta e periférica, a única coisa que está sendo aniquilada são essas vidas “indesejadas” pelo Estado.
O governador de extrema direita, Cláudio Castro (PL-RJ), faz questão de reforçar isso quando diz que “a operação foi um sucesso”. Como se mais de 120 pessoas que perderam suas vidas – sejam suspeitos, policiais ou inocentes – fosse motivo para alguma comemoração. Como se as afetações práticas na vida da população que não conseguiu ir trabalhar, voltar para casa ou estudar não fossem danosas.
Dessa maneira, quando uma figura de autoridade como o governador do Estado – em que, lembremos, todos os seus antecessores eleitos estão presos, com exceção de Benedita da Silva –, afirma tal atrocidade e a mídia repete isso, a gente segue vivendo na espiral da violência. Essa prática de jornalismo declaratório que só escuta um lado é muito injusta, é desinformada e cruel com aquelas pessoas que estão na linha de tiro, no fogo cruzado diariamente.

A polícia vai, mata e sai. Esse é o modus operandi que não repara, não dialoga e não põe fim (porque não é para pôr) ao crime organizado. Se ele representa organização é porque tem muitas mãos que sustentam esse modo de funcionamento, com anuência dos governos, inclusive. E do “outro lado” – já que a polícia e o Estado só garantem “segurança” para uma parcela da sociedade – ficam as mães, companheiras, familiares, que lidam com a violência, com o luto e o sentimento de impotência, sem que o problema seja resolvido em sua raiz.
No dia 1º de novembro meu celular foi inundado de mensagens sobre tiroteios acontecendo no distrito em que minha família reside, a cerca de 70km da capital, com registro de que pessoas do Comando Vermelho estariam fugindo pela região de mata. O medo, ao contrário do que se é esperado, não é o primeiro sentimento que foi sentido por pessoas próximas a mim, mas a curiosidade e anseio por informações, fotos, vídeos. Muito a partir disso – e claro, da chacina no dia 28 – fiquei me questionando como a violência é rotina.
Mais do que isso, ela é naturalizada de tal maneira que perdemos a humanidade. “Lia trabalhou na Ilha do Fundão e agora tá com medo” ou “18 anos de Rio de Janeiro e agora fala isso”, minhas amigas disseram sobre meu medo e minha revolta com o massacre. Eu não deveria sentir, segundo elas, porque isso é normal já. Como não me acostumei?
Como não considero normal escutar os disparos, já que ano passado, enquanto estava no hospital com minha mãe, isso era literalmente rotina? Um dos aprendizados mais cruéis é este: da banalização dessa rotina grotesca, violenta como um todo. É possível não importar dessa maneira?
As imagens de corpos, de sangue, os barulhos de disparos não devem amedrontar por serem regulares? Ao mesmo tempo, diversos comentários nas redes sociais sobre o suposto “sucesso” me dão ainda mais arrepios. Quando celebrar o assassinato e genocídio deliberados sobre corpos majoritariamente negros tornou-se o novo normal?
Existem diversas maneiras de se responder a essa indagação, mas aqui vou refletir sobre o papel do jornalismo em construir narrativas capazes de aplaudir o caos com as mãos cheias de sangue. A forma com que a mídia – seja nos jornais televisivos, impressos, online ou mesmo nos outros meios de comunicação – trata, apura e entrevista sobre a violência nos instaura um desejo de punitivismo, de ódio.
A impunidade é discurso constante, de que o Brasil não pune suficientemente – apesar de ter uma das maiores populações carcerárias do mundo –, de que os “vagabundos” estão à solta e a próxima vítima será você. A mobilização de emoções é carro-chefe nessa cobertura policialesca, o que é um problema real torna-se show, e, portanto, distancia-se do ponto central, da real segurança pública.
O chamado Populismo Penal Midiático assume um lugar importante aqui, por entendermos como ele ganha espaço na sociedade e movimenta as opiniões. Marcela Cardoso Linhares Oliveira Lima, em sua dissertação de mestrado em Direito, o define como:
“Apoiam-se na geração de medo e de insegurança, invocando medidas urgentes que precisam ser adotadas, caso contrário, conforme pregam, a liberdade da população será cerceada pela criminalidade, e a sociedade virará em meio ao caos. Busca-se combater a violência com mais violência, como uma forma de contra atacar, em vez de pesquisar estudar a origem do problema, os fatores que, de fato, originam a criminalidade para descobrir formas científicas – e, logo, mais propensas ao êxito, de tratá-los.” (Lima, p. 61).
Se a única solução apresentada para violência for mais violência, o contexto de guerra será (como é) rotina. Além disso, ele reforça outros tipos de problemas, cada vez mais densos, como os feminicídios ou tentativas realizadas por agentes de segurança, ou seja, mulheres mortas com as armas do governo. Já são nove no Grande Rio somente em 2025, um número do Instituto Fogo Cruzado – e não levantado pelo governo. Mas o que isso tem a ver exatamente com o jornalismo e a cobertura de violências? Tem muito.
Primeiro porque a comunicação nos ensina quando privilegia a versão dos governantes em detrimento dos moradores de favela, quem vivencia a operação de perto. Da mesma forma acontece com os casos de feminicídio, em que escutamos “justificativas” para tal crime. Em ambos não temos o contexto necessário e, mais que isso, esses “acontecimentos” são normalizados; “mais uma operação”; “mais um feminicídio”. Todo dia tem, e terá novamente.
O Estado, por sua vez, legitima o sistema racista que encarcera e assassina sumariamente pessoas negras, e faz o mesmo movimento com a violência contra as mulheres – assim como tantas outras. Esses problemas, como sabemos, são estruturais e complexos de resolver, leva tempo, estratégia a longo prazo e não supostas “faxinas” brutais e vergonhosas como essa promovida por Cláudio Castro.
O palanque político de Castro está sendo construído em cima dos corpos empilhados por sua brutalidade e o jornalismo tem como missão ética questionar essas pessoas, desde o próprio governador até seus aliados. “Operações” como essas acontecem desde os anos 90 no Rio e, vejamos, o crime organizado só cresceu, assim como as inúmeras violências. Dessa forma, são necessários planos a longo prazo, investimento em educação, oportunidades melhores e não mais truculência. Não podemos mais banalizar, nos distanciar porque são “os outros”, é a nossa vida que está (também) sendo atravessada por tamanha violência.
Enquanto enxergarmos apenas números (e não pessoas, vidas); enquanto a mídia alimentar esse discurso de “bandido bom é bandido morto”, nada estará resolvido. A violência não pode ser rotina no Rio de Janeiro e em nenhum lugar. Lembremos, por fim, de votar com consciência nas próximas eleições que se aproximam.
Para se manter informada sobre segurança pública, acesse e acompanhe:
Instituto Fogo Cruzado
Esse texto nos explica como alguns números são calculados: Os nomes e os dados das coisas
Esse podcast fala sobre a (des)humanização: O dia após a chacina no Rio de Janeiro, com Talíria Petrone
Por Lia Junqueira
