
No dia 17 de outubro de 2025, em sua última sessão no Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Luís Roberto Barroso votou a favor da descriminalização do aborto até 12 semanas. Em seu voto, defendeu que o aborto é questão de saúde pública, sendo essencial garantir que o procedimento seja realizado de forma segura. Afirmou que “a criminalização penaliza, sobretudo, as meninas e mulheres pobres, que não podem recorrer ao sistema público de saúde para obter informações, medicações ou procedimentos adequados”.
A fala do ministro é baseada na realidade brasileira: dias antes do voto, Paloma Alves Moura, mulher negra e chefe de cozinha, morreu aos 46 anos em Olinda, Pernambuco. Em entrevista ao G1, sua amiga Thais Leal relatou que a mulher esperou por atendimento médico por quase dez horas no Hospital do Tricentenário, enquanto sentia fortes dores e sangrava constantemente. De acordo com suas acompanhantes, diante da suspeita de que havia realizado um aborto, os profissionais da saúde deixaram de fornecer tratamento adequado a Paloma, que possuía endometriose. O acontecimento destaca como a moral influencia diretamente no controle de corpos femininos, em especial de mulheres negras.
A pauta de direitos reprodutivos tem uma forte presença no Brasil e no mundo há décadas. O tema ganhou força a partir do movimento feminista, em especial na segunda onda; com questionamentos sobre a subordinação feminina e seu papel na sociedade da época, as mulheres lutavam pelo direito sobre seus próprios corpos. A partir desse momento, o movimento incitou diversas discussões que ressoam até hoje, como a legalização do aborto, o uso de anticoncepcionais e o acesso à educação sexual. De acordo com a cartilha divulgada em 2005 pelo Ministério da Saúde, direitos reprodutivos são o direito dos indivíduos em decidirem se querem ou não ter filhos, quantos e quando, tendo eles acesso às informações necessárias para exercerem seu direito de escolha.

No entanto, o contexto do Brasil não corresponde a essa realidade. Em 2023, o deputado Rodolfo Nogueira (PL-MS) propôs a lei n.º 4.844, tentando proibir o ensino de educação sexual nas escolas da Educação Básica. A proposta distoava do cenário da época: o país registrou 83.988 casos de estupro de vulnerável, sendo 72.454 mil deles meninas; destas, 61,6% tinham até 13 anos e 84,7% foram estupradas por familiares ou conhecidos (dados fornecidos pelo 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública). A educação sexual é essencial para ensinar sobre consentimento, conhecimento sobre o próprio corpo e prevenção de violências: negar o seu acesso é retirar uma ferramenta que pode promover a proteção de vítimas.
Em 2020, uma menina de 10 anos, do Espírito Santo, teve sua gravidez e identidade expostas na internet por Sara Fernanda Giromini, ex-assessora da então ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Bolsonaro, Damares Alves. Nas redes sociais, foram divulgadas informações confidenciais sobre a vítima, incluindo o hospital em que realizaria um aborto. A garota, vítima de seu tio, foi xingada e chamada de assassina no local por diversos manifestantes que, motivados por Giromini, não respeitavam o direito que lhe foi garantido por lei. O caso não é isolado: dos 87.545 estupros registrados em 2024, 67.204 são casos de estupro de vulneráveis (19ª Edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública).
Mas o que Paloma Alves Moura, o voto do Ministro Barroso e o caso no Espírito Santo tem em comum? Há séculos, mulheres no mundo todo possuem um mesmo problema: a falta de autonomia sobre seus corpos. Em um país atravessado por desigualdades de gênero, raça e classe, as formas de controle se reinventam: na era digital, discursos de ódio, falas machistas e misóginas acompanhadas de ameaças se tornam mais presentes. Assim, os discursos saem do online e alcançam a realidade, tendo efeitos políticos concretos.
Em outubro de 2025, a Comissão de Direitos Humanos do Senado, presidida por Damares, aprovou o PL 2.524/2024, que proíbe a realização do aborto após 22 semanas de gestação, em casos de estupro e quando há anencefalia – a qual, em sua maioria, o feto não sobrevive. Em caso de risco à vida da gestante, a orientação é antecipar o parto. Ao aprovar a medida, há novamente uma maior limitação da autonomia e poder de escolha das mulheres.
A pauta dos direitos reprodutivos no Brasil vai além de procedimentos médicos: é sobre qual pessoa é legítima para tomar decisões. É sobre o voto de Barroso, a morte de Paloma e a exposição de uma vítima de 10 anos de idade e todos aqueles que não são aptos a terem autonomia sobre seus próprios corpos.
Por Maria Vital
