
O cinema, em sua essência, sempre buscou conciliar o visível e o invisível, o concreto e o etéreo. Em Asas do Desejo (Der Himmel über Berlin, 1987), Wim Wenders não apenas concilia, mas estabelece um fascinante diálogo dialético entre esses polos, utilizando a melancolia de uma Berlim pré-queda do Muro, (o que não se sabia à época da criação do filme), como palco para um dos mais belos e profundos ensaios cinematográficos sobre a condição humana. O filme, erroneamente traduzido para o português (o título original significaria “Um Céu Sobre Berlim”), apresenta Damiel (Bruno Ganz) e Cassiel (Otto Sander), anjos que flutuam sobre uma Berlim despedaçada e em transformação. A cidade, registrada em plongê absoluto e com a câmera em constante movimento, revela grandes espaços urbanos em que uma humanidade melancólica tenta suportar a vida.
A obra se revela como uma sinfonia da cidade elegíaca, e esses movimentos de câmera aéreos adquirem um sentido poético e político quando pensamos a escolha das localidades gravadas, o preto e branco e o contraste geral nessa mistura cinza. Wenders faz a câmera pairar, pairar e flutuar sobre a cidade, sobrepondo, até de maneira ostensiva, o odiado Muro de Berlim, de forma a, talvez, encenar o anseio dos berlinenses de superar a gravidade da história e transpor essa feia barreira física. É extraordinário pensar que essa divisão, que parecia “poeticamente fixa e imutável como a margem de um rio”, desapareceria apenas dois anos depois do lançamento do filme, tornando a obra um registro histórico comovente da (literalmente) queda.
A escolha da Gedächtniskirche — a igreja bombardeada em novembro de 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, e mantida em ruínas, conhecida como a “igreja quebrada pela razão” (kappute kirshe) — como ponto de observação de Damiel é um golpe de mestre do diretor. Do alto desse símbolo de destruição, o anjo testemunha a vocação humana para a dor e a devastação, estabelecendo uma clara antítese entre a criatura etérea e o mundo mundano, guerra e paz. O que é divino está acima, enquanto o humano fica abaixo, sendo observado. Essa dimensão de cidade ferida é reforçada pela inclusão brilhante de imagens de arquivo da capital destruída em 1945, e pela cena em que os anjos vagueiam pela Potsdamer Platz, que em 1987 era ainda um “terreno baldio, um lote vago, um crepúsculo quase rural do nada”, no que julgo ser uma tentativa de evocação de memórias dos espectadores.

A cidade ferida
Os anjos de Wenders são seres de conhecimento puro, capazes de ouvir os lamentos e lhes oferecer esperança, uma centelha de paz ou um pouco de conforto, de compreender a humanidade em sua “dimensão epistemológica”. No entanto, é precisamente essa plenitude intelectual que os condena à imortalidade vazia e desprovida de emoções. Eles não podem sentir o odor azedo, o frio, o calor, o gosto do sangue ou o simples toque, já que esse mundo dos anjos (filmado em um austero preto e branco) é um mundo de intelecto e saber, mas desprovido de coração e de cor. E é justamente nesse ponto que reside o grande poder filosófico do filme, o desejo de Damiel não é por poder, mas por experiência. Ele deseja “poder achar em vez de saber”, ansioso pela incerteza e pela materialidade da vida, querendo submeter-se ao próprio tempo e ao “abraço sensual de crescer, envelhecer e morrer”.
Cassiel, mesmo simpático à causa, resume a atração pela brevidade da vida ao imaginar o quão emocionante deve ser “entusiasmar-se com o mal pela primeira vez – ser um selvagem!”. O cinema de Wenders vai ilustrar essa distância entre o intelecto e o coração através da biblioteca estatal de Berlim, capturada com paixão pelo cinema que ele desenvolve. Ali, os anjos, “guardiões do saber”, divagam, e o ponto alto dessa cena é a presença de Homero (Curt Bois) – o poeta da efemeridade e das guerras – que busca eternizar a cidade no papel. Ele sublinha a ideia de que a busca humana pela imortalidade reside na arte, o único meio de sobreviver ao tempo que Damiel, ironicamente, deseja abraçar.
“Se o homem fosse um animal ou um anjo, não sentiria angústia. Mas, sendo uma síntese, angustia-se. E tanto mais sente a angústia, quanto mais humano for.”
Soren Kierkegaard, O Conceito de Angústia
O recurso do fluxo de consciência, emprestado da literatura (como a de William Faulkner), é a ponte perfeita para que os anjos acessem a “forma mais genuína” das grandes angústias humanas. O filme evoca a ideia de que a natureza complexa da dor humana se torna o meio para que os anjos “ouçam” os pensamentos em sua essência mais desesperada e profunda. A relação dialética entre intangibilidade e materialidade, eternidade e efemeridade, celestial e mundano é o centro temático que Wenders articula com um primor estético apurado e sem igual. O momento narrativo mais potente para mim, à beira do rio Spree (ao lado do Muro), coloca a conversa dos anjos sobre o surgimento do conflito e das guerras lado a lado com o grande símbolo da divisão humana.
Vale notar ainda a figura de Peter Falk, o ator de Hollywood (e fã do Amerikanismus que Wenders tanto aprecia), que é o único a sentir a presença dos anjos. Falk atua como uma ponte cultural e um ser em transição — um anjo caído ou um ser que, por ser ator, é capaz de tudo, simbolizando a capacidade humana de transformação, empatia e a entrega à vida em sua totalidade através da entrega de corpo e alma às artes.
Dela, para a eternidade
A inclusão da música “From Her to Eternity” da banda Nick Cave and The Bad Seeds no filme, é um elemento crucial e profundamente ressonante que enriquece a atmosfera e os temas centrais da obra. A banda é conhecida por seu som pós-punk/rock gótico e tem sonoridade intensa, mórbida e teatral. O som da música, com acordes dissonantes, percussão tribal e a performance vocal característica de Nick Cave, injeta uma dose de crueza e paixão terrena no filme. Acredito que a escolha da banda e da música serve para ancorar o espectador no mundo físico e visceral da Berlim ocidental da época, em contraste com o mundo etéreo e contemplativo dos anjos.
A música aparece de forma marcante quando o anjo Cassiel (Otto Sander) e, em particular, o anjo Damiel (Bruno Ganz) observam o show da banda em um clube escuro e lotado, justamente longe de onde os anjos normalmente ficam. Peculiarmente, nessa cena eles exploram o subterrâneo da humanidade, algo inédito até então, devido aos ângulos sempre gravados de cima, com um olhar superior aos acontecimentos. Os anjos, que normalmente só percebem o mundo em preto e branco, veem a performance ao vivo, e a música se torna uma poderosa manifestação do sofrimento, da paixão e da intensidade da experiência humana, e Damiel, que já está fascinado pela trapezista Marion (Solveig Dommartin), é exposto a essa explosão de emoção.
A música funciona como uma tentação sonora que o atrai ainda mais para o “peso” da vida humana, com seus prazeres e dores, justamente por tratar da obsessão de um homem por uma vizinha do andar de cima, cujos sons ele ouve até mesmo através do teto. Ele espia sua vida, seus choros e seus segredos, e essa sensação de vigilância íntima e claustrofóbica ecoa a própria condição dos anjos, que observam e ouvem os pensamentos mais profundos dos humanos, mas não podem intervir ou interagir. A frase mais reveladora é:
“This desire to possess her is a wound / and it’s nagging at me like a shrew / But I know that to possess her / is, therefore, not to desire her.” (“Este desejo de possuí-la é uma ferida / e está me atormentando como uma megera / Mas eu sei que possuí-la / é, portanto, não desejá-la.”).
Essa parte da música captura perfeitamente o dilema de Damiel. Para ele, possuir (sentir, tocar, amar) Marion significaria perder a eternidade e sua pureza angelical. A canção expõe o conflito central entre a eternidade angelical e a intensidade finita do amor humano. “From Her to Eternity” não é apenas uma trilha sonora, é também um comentário temático e emocional do filme, serve como um grito primal de angústia e desejo que os anjos, em sua quietude, anseiam por compreender e sentir. Representa ainda o coração pulsante e caótico da humanidade que atrai Damiel para o abandono de sua imortalidade. É um dos momentos mais vibrantes e inesquecíveis de Asas do Desejo, selando a conexão do filme com o underground cultural e o espírito da Berlim da época, que até hoje é conhecida globalmente por ser um cenário abrangente para novos estilos musicais e raves.
O triunfo da cor e do amor
A renúncia de Damiel à sua vida perene culmina na cena de sua queda, e no renascimento nos braços de seu companheiro. Ao se tornar humano, a fotografia se transforma: o preto e branco do mundo angelical cede lugar a um mundo cheio de cores e matizes. Essa mudança visual é a manifestação literal da experiência sensorial, portanto o anjo caído, agora homem, está livre para desenvolver o amor pela trapezista Marion (Solveig Dommartin). O diálogo final entre os amantes e a divagação de Damiel remetem à arte barroca, a obra faz lembrar a tela “O Amor Vitorioso” (Amor Vincit Omnia) de Caravaggio, em que o amor triunfa sobre todas as criações humanas e a destruição das guerras. Damiel, ao experimentar o espanto incompreensível de se reconhecer no interior do outro, descobre que esse sentimento que ele tem dificuldade em nomear é aquilo que os humanos chamam simplesmente de amor.

Asas do Desejo é, portanto, uma obra-prima que utiliza a leveza da fantasia romântica para explorar as grandes gravidades da história, da mortalidade e da cultura. Wenders transforma a divisão e a melancolia de Berlim em uma ode atemporal à plenitude sensorial da vida humana, entregando um cinema de ideias, quase um filme-ensaio, e absolutamente distinto, sem igual, que eu recomendo que todos que leram até aqui assistam, apreciem e compartilhem suas ideias sobre.
Serviço:
Asas do Desejo (Der Himmel über Berlin) — Alemanha, 1987
Direção: Wim Wenders
Temas: Humanidade, anjos, desejo, Berlim, amor, sentidos, mortalidade, conexão
Duração: 127 min
Classificação indicativa do Blu-Ray: A16
Nossa classificação indicativa: Livre para todos os públicos
Por Sophia Helena Ribeiro
