
Jorginho Ninja acabou de sair da cadeia. Preso e com uma doença incurável, se converteu a uma denominação evangélica e busca duas coisas depois de cumprir pena: conhecer a filha que havia pedido para a namorada abortar; e obter o perdão da ex-namorada, menina que ele manteve em cárcere privado, num relacionamento abusivo que a afastou de amigos, família e rede de apoio.
Essa é a trama de Juliano Cazarré em Três Graças, novela em exibição às 21h na Globo. À época chefe do crime organizado na comunidade da Chacrinha, ele foi o homem que feriu Gerluce (Sophie Charlotte), causando um trauma tão profundo e duradouro que a mulher reagiu com terror a um toque inesperado e indesejado do homem; tão brutal que ela se recusa a revelar à filha o nome do progenitor biológico de Joélly.
Capítulo após capítulo temos visto o novo Jorginho. Penitente, arrependido, contrito, respeitando o tempo de Gerluce, mas esperançoso de construir uma relação com Joélly, a adolescente cuja criação não contou com participação ou interesse algum dele por 15 anos. Nas apariçõs de Jorginho, há versículos bíblicos e música de louvor. Ele mora na igreja! A trilha sonora é comovente, as conversas com o pastor são honestas. Ele até deu um apavoro no inútil Raul, pai do filho que Joélly espera, fazendo um gesto do bem.
Notícias davam conta de que a trama de Jorginho e Gerluce seria de um estupro, mas a novela resolveu amenizá-la. Amenizar trocando estupro por cárcere privado? Como é pra gente imaginar que esse bebê foi concebido, numa relação em que a menina foi praticamente sequestrada? Qual o consentimento possível de uma menina presa? Realmente esperam que a gente diferencie o que Jorginho fez de um estupro?
Mais que isso: por que a trama foi suavizada? Pelo horário? Duvido que seja a única razão. Me parece que a emissora resolveu atenuar o crime de Jorginho porque seria muito difícil para Gerluce perdoar o homem que a estuprou e para Joélly aceitá-lo. Seria muito difícil para nós, espectadoras, construirmos qualquer empatia por aquele homem.
E a trama, claramente, deseja/espera que a gente dê outra chance a Jorginho; se compadeça dele, torça por ele (será que vem por aí uma cura milagrosa?). Gerluce que engula seu trauma, que seja forçada a aceitar esse abusador pelas ruas, pela comunidade, em sua vida. O sofrimento dela tem muito, muito menos valor que o sofrimento e o arrependimento dele.
Mas inadvertidamente, trocar estupro por cárcere privado de uma menina de 15 anos não ameniza NADA. Nos convida a preencher as lacunas dessa narrativa com histórias que sabemos muito reais, cotidianas, corriqueiras. É de uma sordidez extrema que estejamos sendo convidadas a sentir pena de Jorginho ao mesmo tempo em que a mídia exibe diuturnamente crimes terríveis; e enquanto a mídia continua a tratar de modo ambíguo, machista e, às vezes, misógino violências contra a mulher.
As inúmeras chances a Jorginho são um tapa em nossa cara; mas no fim das contas pouco diferem do modo como a sociedade e a mídia vêm os violadores e as violências que cometem contra nós.
Se você passa por alguma violência e necessita de ajuda, entre em contato com a Central de Atendimento à Mulher pelo Disque 180 ou WhatsApp no número (61) 9610-0180.
Por Karina Gomes Barbosa
*Este texto integra a mobilização do Ariadnes nos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres que começaram 25 de novembro, Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, e vão até o dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos.
