A deturpação do que é o amor em “A Melhor Mãe do Mundo”

A Melhor Mãe do Mundo é um filme de 2025, dirigido por Anna Muylaert, que retrata a vida de Gal (Shirley Cruz), uma mulher negra, catadora de reciclagem de São Paulo que sai em uma jornada com seus filhos pelas ruas da cidade para fugir do marido Leandro (Seu Jorge). Gal sofre violência doméstica e decide dar um basta na situação e denunciar o marido, mas o filme deixa confuso se a denúncia foi efetivada.

Gal e Rihanna em um momento de acolhimento mútuo. Foto: Divulgação.

Segundo os dados do Mapa Nacional da Violência de Gênero, 58.549 mulheres foram vítimas de violência de gênero em São Paulo registrados por boletins de ocorrência, mas a pesquisa afirma que no Brasil mais de 58% das mulheres não procuram uma delegacia após a violência. Segundo a pesquisa Visível E Invisível: A Vitimização De Mulheres No Brasil, realizada em 2023, 65,6% das vítimas de violência contra a mulher eram negras.

A primeira cena do filme acontece em um ambiente de denúncia e resume muito bem o longa. Gal, muito nervosa, é questionada sobre a razão de estar denunciando a violência que sofreu, o que aconteceu e se é casada no papel com o agressor, coisa que não é. Logo em seguida, ela é questionada sobre por que o homem que está sendo denunciado lhe bateu e responde que foi por causa de bebida, que não é a primeira vez que acontece, já que toda vez que ele está bêbado quer transar e se ela não transa ele bate nela. A protagonista chama o cônjuge de “coitado”, porque já que é mulher dele precisa transar. Ela ainda fala da preocupação com os filhos Rihanna e Benin, que não são de Leandro.

Gal escolhe fugir da violência. A catadora vai buscar seus filhos na escola, mas avisam para ela que Leandro já buscou as crianças. Desesperada, ela vai até em casa e leva os meninos para uma “aventura”. O percurso de carroça até a casa de uma prima é chamado de aventura durante os três dias, nos quais ela faz o que pode para alimentar e entreter as crianças. Inclusive, pedir dinheiro para um homem que ela acreditava ser de confiança, mas que a assedia e quer trocar dinheiro por sexo, acordo que estava fora de cogitação para a catadora. 

Depois de muito perrengue, o trio chega à casa da prima de Gal, Valdete. Na casa moram Val, seus dois filhos, Anivaldo, marido de Val, e o pai de Anivaldo. 

Por lá, Gal não recebe tanto apoio quanto gostaria. Val fala que é algo normal, e dá o exemplo do pai de Gal, que batia na mãe dela. Além das primas já terem visto situações de violência contra a mulher, o filme e as reações de Rihanna levam a entender que os filhos de Gal presenciaram a violência. Eles não são um caso isolado da ficção: segundo o Mapa Nacional da Violência Contra a Mulher, 71% das violências têm testemunhas, e dessas, 71% são crianças.  

Depois da fuga o agressor encontra a protagonista, pede desculpas e ela aceita, logo em seguida a pede em casamento. Nesse momento parece que o ciclo de violência vai permanecer, assim como na realidade na qual em 18% dos casos de violência doméstica a mulher permanece no relacionamento. O filme retrata uma tentativa de violência de Leandro contra Gal durante um episódio de bebedeira. A mulher ajuda o agressor a tomar banho para melhorar e ele começa a tentar forçá-la a fazer sexo e ela se nega. O surto de agressão física não vem, mas os xingos permanecem, inclusive afirmar que por ser mulher dele essa é a função dela; ele a acusa de sempre pensar mais nas crianças e diz que a filha dela estava começando a ficar mais velha.

A ficha de Gal cai e ela foge novamente daquela situação, ela rompe o ciclo, ela sente medo de a filha sofrer algo na mão do cônjuge. No final, Rihanna admite à mãe que tinha medo de Leandro e a chama de a melhor mãe do mundo. 

Durante a história, Gal fala diversas vezes sobre amor, que ela ama Leandro e ele a ama, mas o amor machuca? O amor estupra? O amor humilha? Assim é a forma que Leandro trata sua “esposa”, ele e tantos outros homens brasileiros que acreditam que a mulher é um objeto descartável que precisa sempre satisfazê-los. 

O longa ainda retrata o silêncio e o apoio masculino de outros homens frente a violências sofridas. O marido de sua prima Val, Anivaldo, é o responsável por levar o agressor até onde a protagonista estava escondida. Ele também aceita o churrasco que Leandro proporciona como uma tentativa de esconder o problema. O acordo secreto masculino de apoiar uns aos outros independente do que aconteça permanece para além da ficção, casos de violência cometida por jogadores de futebol, como Robinho, Daniel Alves e Cristiano Ronaldo são exemplos na esfera geral que são midiatizados, e quantos não são? O silêncio masculino mata mulheres.

A Melhor Mãe do Mundo é uma obra pautada na realidade, a diferença é que muitas mulheres não conseguem romper o ciclo, muitas vezes por não terem para onde ir, não terem como se sustentar. Apesar da Lei Maria da Penha e da Lei do Feminicídio, que são grandes passos para tentar mitigar a violência contra a mulher, políticas públicas de acolhimento precisam ser incentivadas, às vezes o ciclo de violência continua por dependência financeira e material, às vezes falta um espaço de escuta e acolhimento psicológico.  

O amor não mata! O amor não agride!

Caso esteja passando por alguma situação de violência e precisa de ajuda procure uma delegacia especializada de atendimento à mulher na sua cidade ou entre em contato com a Central de Atendimento à Mulher pelo número 180 ou Whatsapp no número (61) 9610-0180.

Serviço: 

Título original: A Melhor Mãe do Mundo
Onde assistir: Netflix
Gênero: Drama
Classificação: 14 anos (A14) Nossa classificação: 16 anos (A16)
Justificativa: O filme contém cena de tentativa de violência sexual.

Por Ana Beatriz Justino

*Este texto integra a mobilização do Ariadnes nos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres entre os dias 25 de novembro, Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, e o dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos.

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