Ultimato Queer Love: outro olhar sobre os “papéis de gênero”

“Ultimatum: Marry or Move On” (ou “Ultimato: Ou Casa Ou Vaza”) é um reality show de origem estadunidense que ganhou as telas na Netflix em 2022 e, desde então, tem sido um entretenimento bem parecido com a dinâmica dos demais realitys shows, como Casamento às Cegas, Brincando com Fogo e tantos outros. Ele já teve temporadas na França e nos Estados Unidos. 

O teor é bastante comparável: muita bebida alcóolica, frames polêmicos e apelativos como já é de costume. No entanto, o Ultimato conta com o adicional de que os/as participantes já chegam acompanhados/as com seus/suas namorados e namoradas que são seus principais pretendentes de casamento – no qual um deles deu um “ultimato” e o desafio é sair dali com o “amor da sua vida”, seja a pessoa com quem você chegou ou não, ou solteiro/a. Após a chegada, os participantes têm a oportunidade de conversar e ter um encontro com todos os outros, para que, depois disso, cada um/a selecione o/a parceiro/a experimental. 

Parece bem complexo, mas, com o passar dos episódios as regras ficam mais claras, acontece uma redivisão de quem mais se identificou, são formados outros casais e ocorre um período de “casamento experimental”, em que esses novos pares moram juntos por três semanas. No final das contas é assim: ou você sai casado/a com quem chegou – namorado/a original –, sai com uma nova pessoa que acabou de conhecer, ou sai solteiro/a. 

Tendo já explicado o cenário geral, vamos à temporada “Queer Love”, que foi lançada em junho de 2023 e conta com dez participantes, de diferentes etnias e idades. Essas mulheres têm tempos de relacionamentos entre um e quatro anos e têm uma característica em comum: uma delas propôs o casamento o mais rápido possível, o “ultimato”. 

Há um famoso estereótipo de que mulheres lésbicas são rápidas quando o papo é relacionamento, em que elas se apaixonam e logo em seguida já querem morar juntas, se casar e adotar três gatos e, bom, o que o reality show propõe é um pouco disso, testar com quem se tem mais afinidade em poucos encontros e decidir morar com essa pessoa por três semanas. 

A produção nos dá um pequeno resumo de como são os casais originais  e logo parte para as novas experiências, que são bastante complicadas. Existe uma variedade de pessoas, como mulheres latinas, negras, asiáticas e brancas, e, entre elas, as desfem – mulheres que não performam a feminilidade imposta pelos padrões – e as que performam uma feminilidade mais hegemônica. Torna-se nítido ao longo dos episódios que as participantes ocupam “papéis de gênero” diferentes, porém, fica o questionamento de: em um relacionamento lésbico isso deveria acontecer? 

Explico melhor: muitas delas representam o lugar de “provedoras”,  que são responsáveis por trabalhar e trazer sustento ao lar enquanto suas parceiras lavam, passam, cozinham e ficam como “esposas troféus”. No entanto, ao pensar na divisão sexual entre feminino e masculino como local de constante desigualdade é preciso recordar quais “papéis” sociais essas mulheres “deveriam” desempenhar. Para Joan Scott, no artigo “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, o conceito de gênero deve ser visto analiticamente e não de forma natural, tendo em vista que “homem” e “mulher” são frutos de relações sociais em dado momento histórico. 

Voltando aos episódios, esses atos e imposições dentro das relações – tanto originais quanto experimentais – tornam-se completamente insustentáveis, pois há mulheres que colocam o trabalho doméstico como obrigações às suas parceiras. Como por exemplo, a participante Aussie Chau, alega que “gostaria de chegar em casa do trabalho e ter tudo pronto”. Esse tipo de atitude representa exatamente a relação presente na divisão conhecida como “esfera pública e privada”, em que as mulheres não são “aptas”, naturalmente, para a esfera pública, por isso estão naturalmente inseridas no cuidado da casa e da família. 

O ponto que ressalto é: ainda que em relações lésbicas, as mulheres reproduzem esses comportamentos e preconceitos, por conta de um machismo estrutural e das performatividades de padrões heteronormativos, ainda que em uma relação LGBTQIA +.

As participantes, mesmo que inconscientemente, reproduzem o comportamento parecido com  o masculino hegemônico e é possível perceber isso até mesmo em falas mais agressivas e tons autoritários umas com as outras. Porém, esse tipo de ação é complexa pois não é justo julgá-las apenas por serem “escrotas” ou “folgadas”. É preciso rever toda a estrutura e divisão sexual do trabalho e, assim, conseguir visualizar melhor as questões por trás desses atos.  

Por Lia de Lima Junqueira
Serviço: 

Onde assistir: Netflix 

Classificação indicativa: 16 anos (A16) conteúdo sexual, linguagem imprópria

Minha classificação:
Contém violência verbal e consumo de bebidas alcoólicas. 
Contém representações positivas de gênero e sexualidade.  

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