
Lançado em 2016 pela Netflix, o documentário Audrie e Daisy conta as histórias de violência sexual que Audrie Pott, uma estudante de 15 anos da Califórnia, e Daisy Coleman, de 14 anos, de Maryville, sofreram. Além disso, a produção também traz à tona relatos de diversas mulheres que passaram pelo mesmo tipo de violência, e traz entrevistas com alguns dos próprios abusadores escondidos sob pseudônimos.
Audrie Pott era uma menina doce e gentil, filha de pais divorciados. A jovem tinha alguns problemas de autoestima e, por isso, usava diversas camadas de roupa e era muito reservada. Em setembro de 2012, foi a uma festa em que alunos de sua escola também estariam. Lá – como a maioria dos adolescentes dessa idade – a menina consumiu álcool e ficou em estado vulnerável. Após perceberem isso, seus colegas se aproveitaram da situação e abusaram da menina.
Os 3 abusadores não tiveram suas identidades reveladas devido ao fato de serem menores de idade, mas desenharam por todo o seu corpo – inclusive nas partes íntimas – frases extremamente desrespeitosas e perturbadoras, como “fulano esteve aqui” e “mais forte”. Não satisfeitos, violentaram-na com objetos, tiraram e espalharam fotos do corpo desenhado da vítima para humilhá-la ainda mais.
Audrie acordou depois do ocorrido e não se lembrava de nada, mas estranhou os desenhos no corpo e sabia que algo muito errado tinha acontecido. Na escola, notou que as pessoas a olhavam diferente, e uma busca feita em seu computador revelou que a menina tinha implorado aos abusadores para que contassem o que tinha se passado naquela noite, e também que apagassem as fotos que haviam tirado.
A menina não aguentou tanta humilhação e tirou sua própria vida 10 dias depois, em 12 de setembro de 2012. Enquanto isso, os garotos responsáveis receberam de 30 a 45 dias de detenção e puderam continuar frequentando a escola normalmente. Os pais da vítima recorreram por uma pena maior, mas perderam o processo em razão da idade dos criminosos. Então, eles criaram a fundação Audrie Pott, para ensinar jovens sobre consentimento e tentar diminuir casos de abuso sexual.
No mesmo ano, Daisy Coleman, uma garota de 14 anos do Missouri – que já tinha perdido o pai em um acidente de carro alguns anos antes – foi estuprada por Matthew Barnett. Tudo começou em uma noite de janeiro de 2012, quando Daisy e sua amiga Paige, de 13 anos, estavam bebendo em casa, e os amigos de seu irmão as chamaram para beber com eles. Elas, que se consideravam estranhas e excluídas, ficaram deslumbradas com o convite dos jogadores populares.
Chegando lá, as meninas consumiram álcool e ficaram muito bêbadas, quando, então, foram abusadas sexualmente. Daisy foi estuprada por Matthew e deixada na porta de sua casa vestindo uma camiseta, num frio de 5 graus negativos. A mãe da menina, Melinda Coleman, a encontrou e, ao dar um banho quente na filha, percebeu que seu corpo estava muito vermelho, além de suas partes íntimas inchadas. Foi quando a levou para o hospital e, lá, confirmaram sua suspeita: Daisy tinha sido estuprada.
Além disso, depois do ocorrido, descobriram que Jordan Zech, também amigo de seu irmão, tinha filmado o abuso. Daisy e sua família registraram um boletim de ocorrência, mas Matthew era de uma família influente e, por isso, quase não foi penalizado: foi condenado a 4 meses de prisão, que depois foi alterado para 2 anos de liberdade condicional. O xerife considerava que já tinha feito muito e que não havia provas suficientes para caracterizar o ocorrido como estupro. No próprio documentário ele afirma: “As garotas têm tanta culpa quanto os garotos nesse mundo”.
Enquanto isso, devido à popularidade e posição privilegiada do violentador, Daisy era xingada e difamada constantemente, além de ter sido taxada como mentirosa. A menina foi tão retalhada que as pessoas criaram uma hashtag no twitter chamada “Daisy é uma mentirosa”. Ela foi suspensa da equipe de líder de torcida, desenvolveu um quadro de depressão e tentou tirar a própria vida inúmeras vezes. Não só a vítima foi penalizada, mas sua família também: Melinda foi demitida do emprego e eles tiveram a casa incendiada.
Após sofrer tantas injustiças, em 4 de agosto de 2020 – 4 anos após o documentário – Daisy, com apenas 23 anos, tirou sua própria vida. Amigos relataram que poucas semanas antes, ela tinha descoberto que, em razão do estupro sofrido, não poderia ter filhos. Eles contam que esse diagnóstico foi muito impactante para a vítima, pois evidenciou ainda mais o quanto o abuso tinha sido brutal.
Além disso, Daisy reclamava que estava sendo assediada por um homem, que invadiu e tinha as chaves de sua casa. Ela confidenciou que estava constantemente amedrontada: não conseguia comer e nem dormir. Apesar de ter denunciado, a polícia avaliou que a garota estava segura.
Melinda, com seus 58 anos, também tirou a própria vida 4 meses após a morte da filha. Poucas horas antes de falecer, postou em suas redes “não há eu te amo suficiente que eu poderia ter dito enquanto segurava seu corpo sem vida e frio. Sempre foi um orgulho ser sua mãe e melhor amiga”. Melinda também relatou em uma matéria feita logo após a morte de Daisy que não poderia viver sem a filha, e que achava que tinha falhado muito com ela.
Matthew, na época com 26 anos, foi questionado sobre como se sentia com a morte de Daisy e de sua mãe. A resposta foi: “Realmente não tenho nenhum comentário, é muito triste”.
Esses casos são reflexos do quanto, devido a um sistema patriarcal e misógino, os homens se acham donos e proprietários dos corpos femininos, do quanto os consideram objetos sexuais descartáveis e insignificantes. Além disso, a necessidade – tão frequente em casos de violência contra a mulher – de expor, ridicularizar e humilhar as vítimas se dá em razão de satisfazer o desejo masculino em inferiorizar e tornar a vítima submissa.
Casos como esses exemplificam o quão devastador é um abuso sexual, as consequências físicas e psicológicas que as mulheres carregaram são extremamente severas. E, infelizmente, embora os exemplos contados aqui sejam de mais de 10 anos atrás, atualmente a situação continua a mesma: no Brasil, segundo uma notícia divulgada pelo G1 em 2021, uma mulher é vítima de estupro a cada 10 minutos. Dados extremamente preocupantes, evidência de como a mulher ainda é objetificada em pleno século XXI.
Por Maria Clara Soares
Serviço:
– Título original: Audrie e Daisy
– Onde assistir: Netflix
– Classificação indicativa: 16 anos
– Aviso de gatilho: este texto aborda questões de estupro, abuso sexual e suicídio
– Gênero: Documentário
Links utilizados no texto:
Vídeo sobre o caso de Audrie:
Vídeo sobre o caso de Daisy:
