
Se você contar é um documentário, do ano de 2017, dirigido pela jornalista e cineasta Roberta Fernandes, que também é sócia da produtora Andaluz Filmes. Com 30 minutos de duração, o filme retrata oito histórias que têm um crime em comum: o abuso sexual infantil. Nele, cinco mulheres contam seus próprios relatos e o de outras e, apesar de serem casos e pessoas diferentes, as histórias se assemelham muito em diversos pontos.
Todos os abusos ali contatos aconteceram com agressores de dentro da própria casa da vítima ou que pertenciam ao círculo familiar, como irmão mais velho, pai ou padrasto, fato que dificulta a realização de denúncias e confunde a criança quanto à sua responsabilidade (que é nenhuma).
Isso porque, muitas vezes, o agressor ameaça a vítima – completamente indefesa e vulnerável – de que se ela contar o abuso, ninguém acreditará nela e haverá consequências negativas, como intensificação da violência contra a própria criança ou contra alguém que ela ama. Mas, contradizendo o nome do documentário, as mulheres, com muita coragem, contam abertamente sobre a violência que sofreram.
Muitas relatam que, por o criminoso pertencer ao círculo familiar, tinham uma relação de confiança com ele, o que dificultou ainda mais reconhecer que estavam sendo violentadas. Dacylane (25), uma das testemunhas, conta que foi abusada, aos 6 anos de idade, pelo padrasto.
“Eu era uma criança marcada, medrosa… que já não olhava para os brinquedos da mesma forma, já não conseguia ficar perto daquela pessoa que eu tanto admirava. Quando eu ia tomar banho, ele entrava no banheiro, me tocava e falava: ‘Ninguém vai acreditar em você, e se você falar, eu mato você, sua mãe e quem souber’ (…) Eu sentia dor, nojo, vergonha e, principalmente, culpa.”
As outras mulheres, de maneira similar, contam como esse trauma também as afetou: sentiam medo constantemente, uma vez que nem na própria casa estavam seguras, muito pelo contrário, lá era o ambiente em que estavam mais vulneráveis e expostas. Além disso, o abuso sexual no contexto familiar constitui uma experiência que afeta o desenvolvimento emocional da criança, que resulta em prejuízos que podem se prolongar até a vida adulta.
Por isso, esse tipo de violência representa um fator de risco para o desencadeamento de transtornos psicológicos, como depressão, ansiedade e síndrome do pânico. São mulheres que, mesmo adultas, podem se ver indefesas devido à situação a que foram expostas na infância. Mulheres que foram violadas e desrespeitadas profundamente, quando nem sequer sabiam o que era uma relação sexual e, muito menos, um abuso sexual.
Débora (41), relata como até hoje ela é impactada pelo ocorrido: “Eu perdi minha infância, né?! Quando um adulto faz isso, ele rouba a infância da criança. Durante muitos anos, não senti prazer, porque a memória do que aconteceu vem à mente, e isso acontece até hoje.”
Além disso, a visão do que família significa também pode ser alterada para essas vítimas. De acordo com o artigo “Sobrevivendo ao abuso sexual no cotidiano: formas de resistência utilizadas por crianças e adolescentes”, o abuso sexual nesse contexto rompe o imaginário de família como garantia de segurança. Isto é, compromete as futuras relações familiares e interfere na saúde das mulheres em qualquer idade.
Como mulher que também foi vítima desse tipo de abuso, posso contribuir com o meu relato. Muito semelhante com os casos do documentário, meu agressor era do meu círculo familiar, meu próprio irmão: uma pessoa em quem eu confiava e, de certa forma, até admirava. Quando criança, eu não tive educação sexual na escola, o que dificultava meu entendimento sobre consentimento, corpo e abuso.
Então, quando meu irmão se sentia à vontade para tocar meu corpo, eu não sabia identificar que aquilo ultrapassava o que eu tinha na mente como “brincadeira de criança e de irmãos”. Lembro que eu estranhava o comportamento, mas logo me corrigia e pensava: “Não, com certeza não é nada demais, ele é meu irmão e jamais faria qualquer coisa comigo”.
Essa falta de compreensão não só dificultou que eu me defendesse, como também impediu que eu confidenciasse o ocorrido à minha rede de apoio, que, no caso, eram os meus pais. Apenas muitos anos depois (na época, eu tinha 8 anos e a violência aconteceu até os 10), é que fui compreender o que tinha acontecido e, aí sim, contar para alguém, mas sempre com o receio de que ninguém acreditaria.
Ainda bem que tive o privilégio de alguém acreditar em mim, mas muitas mulheres não têm, e são obrigadas a passarem por isso sozinhas e carregarem esse trauma sem nenhuma ajuda ou suporte emocional. Relatar o que tinha acontecido, me ajudou a perceber que eu tinha, sim, sofrido um abuso e que essa dor deveria ser validada e reconhecida, por mim e pelas pessoas que me amam.
É uma violência que, sem dúvidas, impacta na formação da nossa personalidade e em como a gente se define e, por isso – em um mundo onde as mulheres são sexualizadas e descuidadas desde a infância – educação sexual é extremamente importante.
Ao contrário do que muitas pessoas pensam, educação sexual não tem a ver com ensinar sobre sexo. É ensinar sobre consentimento, sobre os limites que ninguém pode ultrapassar com seu corpo e sobre como recorrer a uma rede de apoio caso você reconheça algum comportamento estranho em relação a você.
Por Maria Clara Soares
Serviço:
Título original: Se você contar
Onde assistir: Youtube
Classificação indicativa: 12 anos
Classificação indicativa da autora: 12 anos. Justificativa: os relatos, bastante detalhados, podem servir de gatilho
Aviso de gatilho: Este texto aborda questões de abuso sexual na infância
Gênero: Denúncia
