“A Maldição da Mansão Bly” e o fantasma da repressão sexual feminina 

Dani no velório de Eddie. Créditos da imagem: cena da série.

A Maldição da Mansão Bly, lançada em 2020 na Netflix, faz parte da antologia da série A Maldição da Residência Hill. Ambas são séries de terror criadas por Mike Flanagan e inspiradas em livros clássicos do gênero. A Maldição da Mansão Bly é uma adaptação do livro A Outra Volta do Parafuso, escrito por Henry James e publicado em 1898.

Na trama do livro, uma jovem, filha de um pastor de província, aceita o emprego de tutora de duas crianças órfãs em uma casa de verão no interior da Inglaterra. Lá, ela descobre a presença de fantasmas de antigos funcionários. A protagonista testemunha eventos estranhos e é assombrada por esses fantasmas, que buscam “corromper” as crianças e a própria babá que reprime seus desejos sexuais, por ser uma mulher muito religiosa. 

A série proporciona uma visão contemporânea da história do livro, trazendo para o contexto atual o suspense e o horror que permeiam o enredo original de Henry James. Na adaptação de Flanagan, a jovem Dani Clayton (Victoria Pedretti) também  parte para o interior, um local chamado Bly, onde aceita o trabalho de babá de duas crianças. Ao chegar, fica deslumbrada com a beleza da mansão, mas logo vivencia acontecimentos estranhos. Embora haja semelhanças entre as duas obras, o livro e a série, algumas modificações foram feitas para se adequarem às suas respectivas épocas.

O autor Henry James, em seus clássicos livros de terror, utiliza frequentemente a alegoria de um fantasma para representar a manifestação de sentimentos negativos que assombram pessoas deprimidas por algum motivo, conceito conhecido como “fantasma moral”. No livro, o fantasma moral da babá é o desejo sexual reprimido, pois naquela época, na era vitoriana, a sexualidade era negada às mulheres, principalmente as da igreja. Já na série, ambientada no final dos anos 1980, Dani é atormentada por um fantasma de olhos grandes e brilhantes todas as vezes que se olha no espelho, que simboliza seu medo em aceitar sua orientação sexual. Ao se descobrir lésbica, ela passa por um evento traumático e desde então não consegue se relacionar, sendo perseguida por esse fantasma moral.

No 4º episódio da série, intitulado “Perdas e Culpa”, acompanhamos a história de Dani desde sua infância. Por meio de flashbacks, descobrimos que, no passado, ela tinha um noivo chamado Eddie. Quando crianças, eles eram melhores amigos, e essa relação evoluiu para um romance na adolescência. Contudo, à medida que a data do casamento de Dani e Eddie se aproximava, ela se sentia cada vez mais angustiada. Embora Eddie acreditasse que a causa da angústia fosse a pressão relacionada à festa de casamento, Dani, na verdade, estava descobrindo que não desejava se casar e buscava compreender os motivos. Ao perceber que ela tinha atração por mulheres e havia confundido o amor e afeto que sentia por Eddie, que eram apenas de amizade, decide contar a ele. Ao receber a notícia, Eddie fica irritado e incrédulo. Ele sai do carro para respirar um pouco e acaba sendo atropelado por um ônibus. A última visão que Dani teve dele vivo foram seus óculos redondos iluminados pelos faróis.

Desde a morte do noivo, a culpa assombra Dani, que, ao se olhar no espelho, vê atrás de si o reflexo do homem com olhos de faróis. No entanto, isso muda ao chegar na mansão Bly e conhecer a jardineira Jamie. Elas começam a nutrir sentimentos românticos uma pela outra. No início, é difícil para Dani, pois, durante o processo de descoberta e compreensão de sua sexualidade, seu noivo morreu, e ela acredita que causou isso e por isso não é digna de continuar sua vida. Mas, Jamie a faz sentir-se segura, e Dani consegue superar esse fantasma moral, deixando o passado para trás e acolhendo o futuro ao lado da pessoa que ela ama, sem precisar ignorar sua própria imagem no espelho.

É interessante considerar que, desde a infância, costuma-se dizer às crianças que, ao crescerem, se relacionarão com alguém específico, por exemplo, alguém da escola. Contudo, a outra criança é sempre do sexo oposto. Essa brincadeira “inofensiva” pode parecer simplista, mas nossa identidade é moldada por ela. Quando Dani confunde seus sentimentos por seu amigo Eddie, não se trata apenas de confusão infantil, mas também de uma pressão externa, sugerindo que só podemos nutrir afetos românticos por alguém do sexo oposto. Somente na idade adulta, Dani percebe que sua atração romântica é por mulheres, não por homens.

Monique Wittig, escritora e teórica feminista, no texto Não se nasce mulher , reflete sobre os pensamentos de Simone de Beauviur e questiona o mito da “mulher”como produto de uma construção social. Ela conclui que a heterossexualidade é a base da opressão, aplicando diferenças biológicas e históricas entre os gêneros masculino e feminino. “Recusar tornar-se (ou permanecer) heterossexual sempre significou recusar, consciente ou inconscientemente, tornar-se uma mulher ou um homem”. Assim, ao se aceitar como lésbica, Dani não apenas supera conflitos morais, mas também quebra o ciclo da heterossexualidade compulsória imposto desde a infância.

Por Ana Rodrigues.

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