Protagonismo nas narrativas de violência de gênero: a importância da voz das vítimas na mídia

No documentário A vítima Invisível, da Netflix, dirigido por Juliana Antunes e lançado em 26 de setembro de 2024, a narrativa nos conta sobre a vida de Eliza Samudio, para além de sua morte, que aconteceu em junho de 2010. É uma perspectiva diferente da tradicional. Numa pesquisa para escrever um artigo sobre o feminicídio de Eliza, foi fácil encontrar detalhes da vida e carreira de Bruno Fernandes de Souza, sempre citado nas matérias jornalísticas como Goleiro Bruno, condenado pelo feminicídio de Eliza e pai de seu filho, Bruninho. Quando o crime aconteceu, Bruno jogava no Flamengo e era uma promessa do futebol. Em uma rápida pesquisa na internet era possível saber sobre a história da infância, os sonhos e a trajetória profissional dele. Já sobre Eliza foi preciso pesquisar mais, mas era possível saber um pouco sobre a infância dela. Seus sonhos, por outro lado, eram resumidos ao anseio de ser modelo e se casar com um jogador de futebol, além de sempre ser relembrada a  participação dela em filmes de conteúdo adulto. 

Imagem de Eliza Samudio utilizada no cartaz de divulgação do documentário “A vítima invisível” da Netflix.

O apagamento da vítima não é explicado pelo fato de o assassino ser um jogador famoso. Todos os dias, vítimas de abuso e violências de gênero, especialmente em crimes de proximidade, são apagadas de sua própria história. As subjetividades são esquecidas e é comum que a história de vida das mulheres sejam resumidas à ser vítima, enquanto os agressores tem mais espaço na narrativa, às vezes como uma forma de justificar a violência cometida, e excluindo o fato de que violências – simbólicas ou físicas – de gênero não são casos isolados ou incomuns, principalmente em relações sexuais afetivas. 

Isso aconteceu na cobertura do feminicídio de Eliza, na qual diversas matérias reforçaram estereótipos de gênero e culpabilizaram a vítima por sua própria morte, deslocando a responsabilidade do crime para suas escolhas e atitudes, tentando justificar o assassinato. Além disso, reforçaram a imagem de Bruno, o agressor, como um homem enganado e que perdeu a carreira, minimizando a gravidade do crime e contribuindo para a perpetuação de um ciclo de violência contra as mulheres.

Mas em A Vítima Invisível, descobrimos mais sobre Eliza, para além do estereótipo de “Maria Chuteira”. A mulher era apaixonada por futebol e era goleira quando criança. Uma colega de time cita que Eliza jogava bem e poderia ter tido uma carreira, uma vida diferente. Em mensagens encontradas em seu notebook, Eliza dizia a amigas que queria estudar e ser uma boa mãe para Bruninho, por quem ela demonstrava ter muito carinho e planos para o futuro. No entanto, esse lado de Eliza não era retratado pela mídia. Em dias de pesquisas, lendo artigos e matérias sobre o caso, eu não encontrei quase nada sobre essa Eliza mostrada no documentário. O que é muito violento, e me fez pensar sobre a importância de preservar a memória das vítimas de feminicídio, que não se resumem à agressão ou à relação com o agressor. 

Ao humanizar Eliza, o documentário tenta combater o esquecimento e a tentativa de apagamento de sua história, mostrando que ela era muito mais do que sempre foi mostrado. A luta por justiça e memória é fundamental para casos como o do feminicídio de Eliza, pois o apagamento é mais uma forma de violência e silenciamento de mulheres que já foram violentadas e silenciadas para sempre.

Um dia após o documentário ser lançado, foi ao ar o episódio Consentimento: O debate sobre estupro no O Assunto, podcast do G1, apresentado por Natuza Nery. Nele, Julia Duailibi entrevista a promotora do Ministério Público de São Paulo, co-autora do livro Precisamos falar de consentimento: Uma conversa descomplicada sobre violência sexual além do sim e do não, Silvia Chakian. O tema do episódio gira em torno de um caso que aconteceu na França. Gisele e Dominique Pelicot eram casados há mais de 50 anos, tiveram três filhos e viviam em um vilarejo. Mas tudo mudou em 2020, quando Dominique foi preso por filmar debaixo da saia de uma mulher. Ao apreender o celular dele, a polícia encontrou outros crimes. O homem tinha em seu celular cerca de 20 mil fotos e vídeos da esposa, drogada e dopada por ele, sendo estuprada por dezenas de homens, desde 2011. Dominique e mais 50 réus estão sendo julgados pela Justiça francesa desde setembro. No episódio do podcast, a conversa discorre sobre como o consentimento é abordado em leis de diferentes países, e o quão amplo é esse conceito, muito além do “sim” ou “não”.

Consumindo esses dois produtos, o documentário e o podcast, que tratam de violências de gênero chocantes e que fogem do “comum”, casos que parecem chegar ao extremo, foi inevitável não pensar em Eliza e Gisele e em como elas, mesmo tendo vidas tão diferentes, foram violadas. Mas a forma como foram acolhidas pela sociedade e representadas pela mídia foi o que mais me chamou a atenção. Esses dois casos criminais são exemplos de representações de mulheres em matérias sobre violência de gênero, retratando a vítima boa ou a vítima má. O conceito aparece na dissertação de mestrado de Bárbara Caldeira, Entre assassinatos em série e uma série de assassinatos: o tecer da intriga nas construções narrativas de mulheres mortas e seus agressores nas páginas de dois impressos mineiros

As vítimas boas são representadas como mulheres “perfeitas”; são virtuosas, comportadas, dedicadas à família e ao trabalho. Gisele se encaixa aqui. Talvez a comoção até em outros países e que levou milhares de pessoas a protestos nas ruas da França em busca de uma reforma nas leis do país, pode ser dada pelas circunstâncias bizarras do crime, cometido pelo próprio marido, mas também por toda a narrativa. Gisele prenche o checklist de comportamento esperado de uma mulher na nossa sociedade heteronormativa: era casada com o mesmo homem durante 50 anos, era mãe. Além disso, diferente de muitos casos de abuso, este tem muitas imagens que comprovam as barbaridades do crime cometido pelo marido e vários outros homens, e não “só” o relato da vítima.  

Nessa perspectiva, Eliza era constantemente representada na mídia com imagens sensuais, usando roupas decotadas, retratada como garota de programa, amante de Bruno, entre outros estigmas que a enquadram na tipificação da vítima má. São aquelas que possuem relacionamento extraconjugal, que terminaram um relacionamento ou estão com outro parceiro, aquelas que sabiam do histórico de violência do parceiro e continuaram com ele, as que “provocam” o agressor. Em geral, mulheres que não se encaixam no perfil da vítima ideal são frequentemente culpabilizadas e silenciadas. Eliza, desde o início das agressões e ameaças de Bruno, sempre procurou ajuda, tanto da polícia como da imprensa, mas seu relato não foi o suficiente, e não é na maioria das vezes para as mulheres vítimas de agressão. Assim, a mídia fez de Eliza, além da vítima invisível, a vítima má, que algo fez para merecer aquilo. 

A forma como a mídia retrata as vítimas de violências de gênero – especialmente abusos, estupro e feminicídio – pode moldar a percepção pública sobre o assunto. Por isso, é muito importante tratar essas violências como algo sistêmico, não como casos isolados. Um exemplo são os dados apresentados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, que mostram que feminicídios aumentaram 0,8% em 2023, comparando com o ano anterior, e agressões decorrentes de violência doméstica aumentaram 9,8%, totalizando 258.941, o que reforça o caráter estrutural. 

Também é preciso fugir ao máximo das justificativas para o crime recorrendo a comportamentos da vítima. Eliza Samudio e Gisele Pelicot são duas mulheres opostas, seja em nacionalidade, idade ou história de vida; a primeira foi assassinada brutalmente, e até hoje não encontraram seu corpo. A segunda pensava ter uma vida normal, mas era dopada pelo marido e abusada por diversos homens, durante 10 anos. Não há justificativas isoladas para essas violências, não importa o cenário, nós sempre estamos em perigo, dentro de casa ou indo atrás dos direitos parentais do próprio filho. 

Ana Rodrigues

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