Onda Nova: desejo e liberdade sexual como resistência em tempos de repressão 

As cenas iniciais de Onda Nova retratam um jogo de futebol no qual as pessoas estão transvestidas. Imagem: trecho do filme 

Em 1983 era exibido pela primeira vez, na 7ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o longa brasileiro Onda Nova, que foi rapidamente censurado pela ditadura militar por “contrariar a moral e os bons costumes”. Agora em 2025, mais de 40 anos depois, o filme volta aos cinemas e – ainda assim – desafia o que é conhecido como “moral e bons costumes”. Em cenas repletas de nudez, liberdade sexual e personagens LGBTQIAPN+, assistir à obra é como um alívio em meio ao caos. 

Onda Nova é quase como um manifesto contra as normas que pensamos hoje para relacionamentos e maneiras de se comportar, é livre desde sua concepção, que vem de um cinema independente. A comédia erótica conta a história do Gayvotas Futebol Clube, time feminino (é preciso lembrar que, na época, a modalidade estava recém regulamentada, já que era proibida para mulheres anteriormente) e acompanha as jogadoras, seus núcleos familiares e/ou de relacionamentos. A direção de Ícaro Martins e José Antonio Garcia traz com leveza temas considerados “tabus”, como o aborto, as relações homoafetivas e drogas, além de uma estética marcada por cores vibrantes e muito (muito mesmo) brilho. 

O filme, considerado “o clássico proibido da Boca do Lixo”, conhecido polo cinematográfico da cidade de São Paulo entre 1960 e 1980, de onde borbulhavam produções marginais e inventivas, tem grandes nomes da arte, música e futebol no elenco. Desde Regina Casé, Caetano Veloso e Vera Zimmermann, até ídolos consagrados do time paulista de futebol Corinthians, como Walter Casagrande, Wladimir Rodrigues dos Santos e Olívio Pitta, que foram líderes da Democracia Corinthiana. Além disso, o locutor Osmar Santos, voz marcante das campanhas de mobilização política durante as Diretas Já, também faz participação no trecho do jogo contra a seleção italiana.

José Antonio Garcia, um dos diretores da produção, comenta que a intenção era brincar e subverter os papéis ditos “femininos e masculinos”, justamente para questionar e nos fazer pensar para além daquilo que está colocado como norma. Desde o início acompanhamos atividades “tipicamente” atribuída aos homens sendo desempenhadas por mulheres (e meninas), como o ato de pichar, jogar futebol, dirigir táxi, ter diversos parceiros e parceiras sexuais e até mesmo ser rebelde com a família – um comportamento mal visto para meninas que têm de ser “belas, recatadas e do lar”, ao contrário dos meninos que são, por natureza, aventureiros. 

Poster de divulgação do filme, recriado por Helena Garcia, filha do cineasta José Antonio Garcia

Ao desafiar as performances de gênero, Onda Nova abre a possibilidade de brincar e fazer piada de coisas já consagradas, como o núcleo familiar de Lili (Cristina Mutarelli), jogadora do time, no qual a mãe é interpretada pelo ator Patrício Bisso, uma pessoa autoritária em que, na maioria das cenas, aparece lendo jornal e fumando. Enquanto isso, o pai fica num canto fazendo tricô, ironizando essa figura de pai e mãe que nos parece intocável. 

Além disso, algo muito presente e importante para a narrativa são o desejo e tesão que praticamente todos os personagens manifestam, seja em transas entre pessoas do mesmo gênero ou diferentes. Em tempos de menos sexo explícito nas telonas, a produção de 83 é um chamado às pornochanchadas da época, que trazem o corpo como centro, o prazer como consequência deliciosa do ato. Afinal de contas, podemos pensar na máxima de que “cinema brasileiro é só putaria” como algo interessante a ser observado e discutido, pois a liberdade dita “excessiva” incomodava a parcela mais conservadora da população – e continua incomodando. 

É evidente que precisamos pensar em quais maneiras o sexo está sendo colocado, qual papel as pessoas estão desempenhando (principalmente os femininos), ou mesmo se há representação de violências para que ele ocorra, como estupros e abusos. No entanto, quando a temática faz parte da narrativa – ou existe de maneira complementar –, a experiência de poder explorar os corpos e a nudez de maneira tranquila torna-se incrível. 

Neste momento, em que estamos no mês do orgulho, é preciso pensar em quais ondas novas estamos dispostas a entrar de cabeça, deixando para trás o que nos impede de ser quem somos da maneira mais livre possível. Que nossos desejos possam florescer e encontrar caminhos abertos – ainda que estejamos em tempos difíceis com os fantasmas criados em volta do gênero, como diz Judith Butler em Quem tem medo do gênero? (2024). É preciso desafiar, coletivamente, todas as normas criadas e reforçadas na performatividade de ser mulher, homem e de ser gente nesse mundo. 

A obra nacional refaz esse movimento – que, diga-se de passagem, estamos precisando, vide a onda de jovens conservadores – disruptivo e até mesmo revolucionário, de quem se coloca como quer e provoca quem ainda tem uma visão ‘ultrapassada’ das relações. As Gayvotas voaram e surfaram nessa onda com autenticidade, enfrentando diversos dilemas dessa transição entre adolescência e vida adulta que estariam adentrando, como os primeiros amores, questões financeiras e sentimentais. Tudo isso sem perder o senso de humor (um tanto quanto ácido em algumas passagens, mas maravilhoso). 

Time das Gayvotas e o treinador. Foto: trecho do filme 

O time feminino e o enredo tornam possível a vida de pessoas que estavam sendo condenadas nesse período histórico apenas por existirem e estarem ocupando determinados lugares – como os da arte, música e cinema. As Gayvotas dão vida ao que o regime militar gostaria de destruir, e mesmo agora, o que a extrema direita poderia classificar como “ideologia de gênero”, “mamadeira de piroca” e os tantos outros absurdos inventados. Quando, na verdade, a luta representada pelas mulheres, pessoas negras e LGBTQIAPN+ são apenas para viverem seus amores e vidas em paz – o que todos queremos e desejamos. 

Ao assistir o longa na Estação Net Rio, cinema de rua tradicional do Rio de Janeiro e que costuma trazer obras independentes e alternativas, com minha companheira naquela segunda-feira após o show de Lady Gaga, me deu gás e vontade de mais. Mais liberdade e menos impedimentos. Espero que neste junho possamos enxergar mais ondas – boas e novas – como essa, apesar de tudo.

Serviço:

Título Original: Onda Nova
Onde Assistir:
Mubi e ClaroTV+
Duração: 1h 42min (102min)
Classificação Indicativa: 18 anos (A18)
Classificação da autora:
18 anos (A18)
Justificativa:
O filme retrata cenas de sexo e linguagem explícita, uso de drogas lícitas e ilícitas.
Gênero: Comédia/Esporte

Por Lia Junqueira

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