Psicose: entre a passividade das mulheres e dos pássaros 

Marion Crane (Janet Leigh) e Norman Bates (Anthony Perkins) no Bates Motel. Imagem: trecho do filme

A tarefa de falar e refletir por uma perspectiva gendrada sobre um dos filmes de horror mais clássicos da história do cinema vai muito além da análise fílmica. É preciso considerar os arredores da produção, a época e quais significados são criados e evocados a partir dessas produções. Além disso, a obra foi considerada “o melhor filme de todos os tempos” pela revista Variety. Não será nada fácil e peço, desde já, licença aos cinéfilos de plantão. 

Psicose (ou Psycho no título original) foi lançado em 1960 e dirigido por Alfred Hitchcock, tornando-se um, se não o, dos longas mais famosos do diretor e uma das principais referências de horror – que podemos observar em diversas produções posteriores. O filme é inspirado no livro homônimo de Robert Bloch, de 1959, que trata do mistério do Motel Bates, porém tem diferenças fundamentais da produção de Hitchcock, como a caracterização do personagem de Norman Bates, que no livro era um homem de meia-idade e acima do peso, mas nas telas foi representado por Anthony Perkins, ator galã da época. 

Quando uma secretária rouba 40 mil dólares para quitar as dívidas de seu amante e foge dirigindo sem rumo pelas estradas do Arizona, inicia-se o que é considerado o “primeiro filme” dentro de Psicose. É o momento em que Marion Crane (Janet Leigh) busca ativamente pelo que acredita e sente desejo. Porém, por conta da intensa chuva e pelo cansaço que já se estendia durante as horas de direção, ela decide parar num motel na beira da estrada e conhece Norman Bates (Anthony Perkins), dono do local e quem a recebe. 

O encontro, que nos mantém em alerta o tempo inteiro, possui logo no início um diálogo incômodo e que me chama a atenção para uma interpretação: a passividade dos pássaros, que passam pelo processo de taxidermia feito por Norman. Ele afirma que os animais são “mais fáceis” de se realizar o empalhamento, mas será? Talvez essa seja mais uma afirmação do que se quer acreditar sobre isso. O dono do motel ainda compara a forma de Marion se alimentar à dos animais, nos provocando novamente com essa interação.

Há ainda uma relação entre sexo e horror, que são primos quase-irmãos quando pensamos nesse cinema, que coloca as mulheres seminuas (ou nuas), com roupas sexualizadas e com corpos à mostra para que o terror se estabeleça. A morte no banho de Marion Crane, assassinada por Norman Bates, potencializa e corporifica a violência nesse corpo feminino, que jorra sangue e esbraveja seus gritos. 

A personagem que inicia o filme com agência e atitude acaba como um dos pássaros empalhados na sala de Norman, já sem condições de tomar seu próprio caminho. Nesse contexto, podemos estabelecer uma ligação simbólica entre ambos, que são interceptados de sua vida e ação, mas não porque são passivas. Essa imagem é criada de propósito, para que acreditemos na imposição de violências aos corpos femininos, por exemplo, e para que observemos isso de maneira também passiva.  

Clássico poster de Psicose, em sua versão original de 1960 

O destaque dado ao corpo de Janet Leigh, atriz que interpreta a personagem feminina principal, no cartaz de divulgação dá outros contornos a esse horror que estamos pensando e fomos acostumadas a consumir. O terror, afinal de contas, é ser mulher? O medo se coloca – e é construído – através de nossos corpos, fazendo deles vetores para mais violências. 

O cinema de Hitchcock é conhecido pelo “olhar masculino” e por experiências traumatizantes para mulheres (dentro e fora das tramas). A própria Janet afirma em entrevista que os banhos em chuveiros foram drasticamente alterados pela gravação do longa, uma vez que não conseguia mais se banhar tranquilamente, sem o medo de ser assassinada – assim como ocorreu em Psicose. Algo que precisamos refletir é: esse sentimento de insegurança da atriz com um ato simples torna-se também um reflexo da sensação de ser mulher nesse mundo. 

Estamos sendo mortas, feridas e julgadas somente por existir, e a cultura representa – e reforça – tudo isso de maneira brutal. Os olhares masculinos voltados para Marion desde o início, quando Cassidy lança um olhar lascivo sobre a mulher; o policial que a persegue e aborda na estrada; ou mesmo Norman, que a observa se despir por um buraco na parede. Podemos pensar ainda nas câmeras, que a observam na cena inicial do filme, quando ela está no quarto de hotel com Sam (John Gavin) seminua ou mesmo na cena do chuveiro, na qual observamos pedaços dela. 

Isso se constitui como “tradição” e dá a impressão de que é um lugar intocável, que não pode ser criticado, seja no cinema ou na literatura. No entanto, o que elaboramos com a mostra O Horror Tem Corpo de Mulher é que essas expressões artísticas precisam ser questionadas e nos trazer incômodos, uma vez que nossos corpos e subjetividades vêm sendo colocadas como centro da violência – seja como vítima, veículo ou vilã. 

Dentre os comentários feitos durante a exibição do filme, pensamos também sobre o “complexo materno masculino” que fala de sujeitos que não desenvolvem sua independência e, claro, sobre o Complexo de Édipo, já que Norman demonstra um fascínio e obsessão pela figura de sua mãe – da qual, inclusive, utiliza as roupas e performa essa figura. No entanto, esses temas dizem respeito à área da psicologia e psicanálise, nas quais não possuo o devido aprofundamento.  

Os significados clínicos de “psicose” apontam para sintoma de doença psíquica ou a perda de contato com a realidade, causando delírios, alucinações ou confusão mental. No filme, quem acaba sendo mais atravessado por esse processo é Norman, que os manifesta sobre e com os corpos femininos tudo o que sente. Que daqui em diante possamos ver representações menos violentas e trágicas para as mulheres – não só no cinema de horror, mas em todos. 

Alguns textos me auxiliaram na construção dessa crítica: 

Crítica | Psicose (1960) 

Psicose: Veja como o filme traumatizou Janet Leigh 

The Male Gaze in Alfred Hitchcock’s Psycho | English 245: Film Form and Culture 

Serviço: 

Título Original: Psycho
Onde assistir: Telecine 
Gênero: Terror, Mistério
Classificação: 14 anos (A14)
Nossa classificação: 16 anos (A16)
Justificativa: O filme contém representações de violência e o corpo feminino atua como vetor. 

Por Lia Junqueira

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