
Em 2008, ano em que o Brasil parou para acompanhar o sequestro e feminicídio de Eloá Pimentel, de 15 anos, a violência de gênero crescia. Naquele ano, a Central de Atendimento à Mulher registrou um aumento de 22,3% nos relatos de violência em comparação com o ano anterior, totalizando 24.523 chamados. Quase a totalidade das agressões era classificada como violência doméstica (94,1%), e em mais da metade dos casos (63,2%), o agressor era o cônjuge da denunciante. Estes dados demonstram que o drama de Eloá era a regra, não a exceção, em um país onde a Lei Maria da Penha (2006) ainda engatinhava, refletido no aumento de 245% nas solicitações de informação sobre a lei, e o termo feminicídio ainda não existia legalmente, pois a legislação foi sancionada apenas em 2015.
Eloá Cristina Pimentel era a irmã do meio de dois irmãos, Ronickson e Douglas, filha de Ana Cristina e Everaldo. Aos 12 anos, a menina começou a namorar Lindemberg Fernandes Alves, de 19 anos. Ele era amigo de seu irmão mais novo e morava nas proximidades de sua casa. Eloá vivia com a família no bairro Jardim Santo André, no município de Santo André, em São Paulo. Em seu diário e em mensagem enviada durante entrevista, Eloá demonstrava ser carinhosa e ligada à família.
A espetacularização e banalização da violência contra mulher
Após três anos de namoro, Lindemberg não aceitou o término, passando a perseguir e ameaçar Eloá. Foi neste contexto que, no dia 13 de outubro de 2008, iniciou-se o sequestro que seria televisionado por cinco dias, transformando a dor em consumo público.
No início do sequestro, estavam no apartamento Eloá, sua amiga Nayara Rodrigues e mais dois colegas de turma, que haviam se reunido na casa de Eloá para fazer um trabalho escolar quando Lindemberg invadiu. Os meninos foram liberados e, algum tempo depois, Nayara também foi liberada, mas retornou ao local para negociar com o sequestrador. O Grupo de Ações Táticas Especiais (GATE) da Polícia Militar de São Paulo foi acionado pela polícia ao perceber a gravidade da situação.
Desde o primeiro momento, Lindemberg demonstrava que sua intenção era matar Eloá e tratava as meninas com agressividade, gritando e xingando-as. Ainda assim, o governador da época, José Serra (PSDB), a polícia e os jornalistas que cobriam o caso tratavam o crime como um ato de um “menino” que estava agindo por “amor”. Por não possuir antecedentes criminais e ter um emprego, Lindemberg não era visto como uma ameaça real, mas sim como alguém movido pela paixão, o que facilitou a narrativa de que se tratava de um “crime passional” e desqualificou a violência de gênero explícita que se desenrolava.
Neste contexto, a mídia transformou o cárcere privado de Eloá em um espetáculo de cinco dias. O sequestro se tornou um “reality show” transmitido ao vivo, no qual a ética jornalística foi substituída pela audiência, resultando na desconsideração do risco de vida da vítima e de Nayara Rodrigues e num foco no protagonismo do agressor. O caso é, ainda hoje, exemplo de um erro jornalístico que, ao acompanhar o caso 24 horas por dia, mantinha o sequestrador informado pela televisão e diminuía o impacto da brutalidade do crime. Isso se dava ao ligar para o sequestrador para “bater-papo”, interferindo na negociação que estava sendo feita pela polícia, ainda que ineficaz. Inclusive, a cobertura do sequestro e feminicídio de Eloá são o tema central do primeiro documentário sobre o crime, “Quem matou Eloá?”, dirigido por Lívia Perez, de 2015, disponível no Youtube. Oito anos depois, a Netflix lançou outro documentário sobre o caso. “Caso Eloá: Refém ao Vivo” conta com a participação dos familiares e amigos de Eloá, da promotora do caso, de jornalistas e policiais que trabalhavam na época.
O novo documentário, diferente do primeiro, vai além da cobertura da mídia e também aborda a negociação, contextualiza o relacionamento de Eloá e Lindemberg, mostra mais detalhes do crime. A produção traz a versão da família da vítima, do jornalista que ligou para Lindemberg ao vivo e do negociador. Há críticas sobre o sensacionalismo, a romantização da mídia e a comoção do público com o Lindemberg durante o sequestro.
Mas o documentário se perde na própria lógica que critica. Ao contar com encenações e simulações dramáticas, músicas de suspense, e ao mostrar imagens de Eloá baleada sendo retirada da casa, a produção corre o risco de cair, mais uma vez, na espetacularização da violência de gênero, mantendo o foco no terror e nas minúcias do crime, e não na vida tirada e na responsabilidade estrutural. O formato de true crime, ao focar no drama do crime em si, corre o risco de cair novamente na espetacularização da dor, fixando a memória do agressor que a mídia original tanto alimentou, em vez de focar inteiramente na vida e na trajetória interrompida de Eloá.
Em “Quem Matou Eloá?” (2015), uma frase dita no documentário se encaixa perfeitamente neste contexto: “Apontar a câmera para uma cena real de sequestro e editar como se fosse um filme de ação, a ideia é subtrair a realidade do fato; você transforma aquilo numa narrativa de filme justamente para dar a impressão para quem está assistindo de que aquilo não é real”. Ao invés de adotar uma abordagem documental, a nova produção, feita 17 anos após o crime e com um grande acervo de imagens de época, escolhe incorporar o recurso da encenação e simulação. O documentário usa uma atriz que, sem ter o rosto revelado, encena a escrita no diário de Eloá e recita as frases que ela própria escreveu. Essa escolha, assim como a simulação de Eloá sendo perseguida por Lindemberg, reforça uma narrativa artificial e ficcional.
A mídia acompanhou o caso exaustivamente durante os cinco dias, e a mistura de imagens de arquivo com a dramatização me deixou confusa sobre o que era um fato filmado na época e o que é simulação. Para contar uma história de violência, não é preciso ser literal. O próprio documentário da Netflix prova que existem outros elementos que podem compor a narrativa com o devido peso, como as imagens da casa após o crime: bagunçada, suja, com sangue no chão. Os vestígios do horror que aconteceu ali, e não a encenação, que denunciam a violência.
A história de Eloá mostra que a violência de gênero cometida por companheiros e ex-companheiros não é um desvio, mas uma prática estrutural ainda muito presente no nosso país. A infantilização e a defesa do agressor, como ocorreu com Lindemberg, continuam sendo estratégias que desresponsabilizam homens e descredibilizam as vítimas, nutrindo a ideia equivocada de que ciúme ou “amor demais” justificam a brutalidade. Muitos agressores não têm antecedentes e podem parecer “bons” para a sociedade, e justamente por isso a violência se mantém. Não são monstros, são homens comuns.
Reconhecer esse padrão, denunciar e tratar esses casos com seriedade é fundamental para romper o ciclo. Eloá não pode ser lembrada apenas pelo crime de que foi vítima, mas pela urgência de enfrentar a normalização da violência que ainda coloca tantas meninas e mulheres em risco.
*Este texto integra a mobilização do Ariadnes nos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres que começam hoje, 25 de novembro, Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, e vão até o dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos.
Por Ana Luiza Rodrigues
