
Em 2024 foram registrados mais de 85 mil casos de estupro no Brasil, de acordo com dados publicados na 19º edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, organizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Esse foi o maior número registrado desde 2011, quando o FBSP iniciou esse levantamento. Desses 85 mil, cerca de mais de 65 mil foram casos de estupro de vulnerável, sendo que o número de meninas vítimas desse crime chega a quase 56 mil. Das vítimas, 42% tinham entre 10 e 13 anos, quase 68% dos casos aconteceram dentro de casa e 59,5% dos agressores tinham relação familiar com as vítimas.
Essa realidade é retratada no filme Manas (2024), dirigido pela cineasta Marianna Brennand e estrelado por Jamilli Correa, Dira Paes, Fátima Macedo, Ingrid Trigueiro, Samira Eloá, Rômulo Braga e Rodrigo Garcia. A obra é ambientada no estado do Pará e retrata os casos de abuso e exploração sexual que são registrados na Ilha do Marajó. A narrativa acompanha a história de Marcielle (Jamilli Correa), uma menina de 13 anos que, após sofrer abusos por parte do pai (Rômulo Braga) e de um homem que ela conhece em uma balsa (Rodrigo Garcia), decide romper com esse ciclo de violência que atinge as meninas da comunidade onde vive.
Um destaque foi a escolha da diretora de não mostrar explicitamente nenhuma cena de abuso. A tensão construída pela montagem das cenas e a trilha sonora já são suficientes para trazer essa sensação para o público. Isso também é relevante pela escolha do elenco, já que a atriz que interpreta a protagonista tinha 13 anos quando aconteceram as gravações. Esse tipo de instrumento narrativo é importante também para a obra representar a realidade dos crimes, mas sem “reproduzir” o crime em si, já que muitas vezes, a escolha por reproduzir cenas de violência tira um pouco o foco da denúncia e foca mais no ato.
Na história, Marcielle vive com os pais e irmãos em uma casa numa pequena comunidade ribeirinha aos arredores da Ilha do Marajó. Ela também tem uma irmã que foi para a região sul do Brasil, e sempre questiona a mãe (Fátima Macedo) sobre a razão de a jovem ter feito isso. A mãe sempre responde que a irmã está em um lugar melhor com um homem que ela conheceu na balsa. No filme, a balsa é um ponto importante para entender a dinâmica da expectativa de vida das mulheres da comunidade e a violência sexual que acontece na ilha.
A balsa representa um lugar ambíguo: ao mesmo tempo que as jovens daquela região a enxergam como um meio de conseguir uma vida melhor, ela também representa um lugar de abuso e violência. A balsa demonstra que a violência contra corpos femininos é tão normalizada na sociedade em que vivemos que chega num ponto que as próprias vítimas normalizam esse tipo abuso, como no caso da amiga da protagonista, interpretada por Samira Eloá. Os homens que usam a balsa para se locomover pelo lugar muitas vezes são trabalhadores de fora de Marajó que se aproveitam da vulnerabilidade econômica e da pouca experiência de vida das jovens (elas acabaram de sair da infância), para aliciá-las a dormir com eles.
Ao longo da narrativa, é revelado para o espectador o ciclo de violência sexual que acontece com as meninas e mulheres daquela comunidade. Por exemplo, um dia o pai de Marcielle pede para irem caçar juntos no meio da floresta, algo que deixa a mãe apreensiva. Nesse dia, Marcielle é estuprada pelo próprio pai. Depois disso, uma sequência de abusos acontece, não só com ela, mas com todas as meninas daquele lugar. No final do filme, a mãe dela revela que também foi violentada pelo próprio pai e expulsa de casa pela mãe quando ficou grávida.
A policial interpretada por Dira Paes prende os homens que estavam envolvidos no abuso das jovens e tira a guarda das meninas dos pais, pois quem devia cuidar e preservar a dignidade delas está cometendo violências ou sendo omisso em relação a elas. Quando essa policial questiona a mãe de Marcielle sobre ela saber o que acontecia nas balsas, a mulher diz que não queria que acontecesse com a filha o mesmo que aconteceu com ela.
O ponto de virada na história acontece quando Marcielle percebe que aquele tipo de situação, mesmo comum entre aquelas jovens, não é adequada e nem aceitável. Um dia, ao chegar em casa e não encontrar a irmã mais nova, que tem menos de 10 anos, ela fica preocupada com o que pode ter acontecido. Mesmo com a resistência da mãe em dizer onde a menina está, a protagonista vai atrás do pai abusador na floresta. Lá ela coloca um fim àquele ciclo de abuso e salva a irmã do mesmo que aconteceu com ela.
A partir dessa obra e os dados obtidos pelo FBSP, observamos que a violência sexual contra crianças e adolecentes do gênero feminino é tratada socialmente como algo normalizado e extremamente recorrente. Mesmo sendo um crime passível de punição (Lei nº 12.015/2009), os homens ainda se sentem confortáveis em dominar os corpos femininos e os números indicam que o principal tipo de corpo atacado é o infantil, negro (55,6%) e de baixa renda. Isso revela que não apenas o estupro está enraizado na sociedade, mas também a pedofilia.
Outro fator que temos que considerar quando olhamos para os dados sobre violência sexual cometidas contra crianças é a subnotificação de casos e de gênero. Ou seja, mesmo que os números apresentados sejam alarmantes, ele pode ser maior. E mesmo que a ocorrência dos casos prevaleça contra meninas, não podemos esquecer que os meninos também estão vulneráveis a esse tipo de crime. O estudo aponta que existe uma subnotificação maior entre os casos de violência sexual cometida contra garotos. A principal razão disso são as barreiras sociais e simbólicas que fazem parte da sociedade patriarcal em que vivemos.
Serviço:
Título Original: Manas
Onde Assistir: Amazon Prime Video
Duração: 1h 41min(101min)
Gênero: Drama
Classificação Indicativa: 16 anos(A16)
Nossa Classificação: 18 anos(A18)
Justificativa: O filme apresenta situações implícitas de abuso sexual contra menores de idade e pode causar gatillhos.
*Este texto integra a mobilização do Ariadnes nos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres entre os dias 25 de novembro, Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, e o dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos.
Por Mariana Amaral
