The Handmaid’s Tale e o controle do feminino

Na série The Handmaid’s Tale, lançada em 2017 pela Hulu, acompanhamos June, uma mulher que, após um golpe de líderes religiosos de extrema-direita nos Estados Unidos, é obrigada a ser uma aia. As aias são um grupo de mulheres que, por sua fertilidade, são selecionadas pelo Estado teocrático para serem estupradas e controladas, buscando uma solução para a  baixa taxa de natalidade do país. Assim, a protagonista passa a ser chamada de Offred; os  nomes delas são designados a partir da família à qual elas servem no momento (de Fred – of Fred, em inglês) – uma maneira de descaracterizar suas identidades. Para além da violência sexual, essas mulheres são alvo de diversas violações, sendo exploradas pelo governo de ocasião.

As aias reunidas na 6ª temporada. Reprodução: Prime Video

De acordo com a Lei Maria da Penha, são 5 os tipos de violência contra a mulher: a violência física, que é qualquer ação que afete a integridade e/ou a saúde do corpo feminino; a violência psicológica, sendo qualquer conduta que prejudique o emocional e a autoestima da mulher, tendo controle de seu comportamento; a violência sexual, que violenta a vítima de forma não desejada sexualmente; a violência patrimonial, que é responsável por tirar das mulheres seus pertences como recursos econômicos, trabalho, documentos pessoais etc; e a violência moral, colocando a vítima em situações de injúria, calúnia e/ou difamação. A partir desses dados e analisando o contexto da série, entendemos que as aias são vítimas de todas as violências contra a mulher previstas pela lei brasileira – e outras, ainda não cobertas pela legislação.

A obra audiovisual é inspirada no livro de mesmo nome, traduzido para o Brasil como O conto da aia, da autora canadense Margaret Atwood. Assim como na série, Offred mora na então atual República de Gilead, pertencendo a uma família de alto escalão do governo. Para além das aias, as mulheres são divididas em outras 4 categorias: esposas, tias (responsáveis pelo treinamento das novas aias), marthas (funcionárias domésticas) e jezebels (mulheres forçadas a prostituição). Em todos os casos, elas possuem papéis pré-definidos e são impossibilitadas de exercerem outras tarefas, sendo proibidas de agirem em prol de si mesmas.

A distopia mostra um mundo onde a figura feminina é reprimida a todo tempo, sempre com base em discursos religiosos. Com o objetivo de melhorar a taxa de natalidade do país, as aias são tratadas somente como máquinas reprodutoras, sendo estupradas constantemente. A violação ocorre por meio de um ritual que, na série, é baseado em uma parte específica da Bíblia: 

“Raquel, vendo que não dava filhos a Jacó, teve inveja de sua irmã e disse a Jacó: Dá-me filhos, senão eu morro. Então Jacó irou-se contra Raquel e disse: Estou eu, porventura, no lugar de Deus, que te impediu o fruto do ventre? E ela disse: Eis aqui minha serva Bila; entra a ela, para que ela dê à luz sobre os meus joelhos, e eu assim tenha filhos por ela” (Gênesis 30:1-3)

Após a leitura, o estupro é realizado, imobilizando a aia entre as pernas da esposa. Na distopia, atos sexuais são exclusivos para reprodução: mais uma maneira de controle dos corpos e da sexualidade feminina, tendo em vista que os homens frequentam prostíbulos ilegais. Neles, eles são atendidos por mulheres que, na visão da sociedade de Gilead, são rebeldes demais para o sistema; dentre elas, antigas pesquisadoras da academia ou as que fugiram do Centro Vermelho (local de treinamento das aias). As jezebels tem uma falsa sensação de liberdade, tendo em vista que escolheram trabalhar naquele local, tendo acesso a livros e podendo se relacionar sexualmente para além da reprodução; porém, seus corpos ainda são controlados pelo Estado, sendo tratadas somente como objetos de prazer para os homens. Na ficção (e na vida real) a violência contra a mulher não é um fato isolado – é um problema estrutural, que se fortalece diariamente na sociedade

“Aias” contra o PL do Estuprador no Rio de Janeiro, 2024. Reprodução: Tomaz Silva/Agência Brasil

O mundo de Gilead não é tão distante da realidade: de acordo com a Secretaria de Comunicação Social do Governo Federal, em 2024 foram realizadas 573.131 ligações para o Disque 180 em todo o território nacional. Destas, 32.591 relataram sofrerem violências há mais de um ano, sendo metade de todas denúncias (46,4%) ocorridas diariamente. Em 2025, a Comissão de Direitos Humanos do Senado, presidida por Damares Alves (Republicanos- DF), aprovou o PL 2.524/2024, proibindo a realização do aborto após 22 semanas de gestação: mais um ato que limita a autonomia das mulheres sobre seus próprios corpos e seus direitos reprodutivos, tendo em vista que nem mesmo em casos de risco à saúde da gestante o aborto poderá ser realizado. The Handmaid’s Tale é muito além de uma distopia – é o retrato de uma sociedade não tão distante que, baseada na desumanização e controle das mulheres, passou a tomá-las para si. 

Se você passa por alguma violência e necessita de ajuda, entre em contato com a Central de Atendimento à Mulher pelo Disque 180 ou Whatsapp no número (61) 9610-0180.

Título original: The Handmais’s Tale
Temporadas: 6 temporadas (2017-2025
Onde assistir: Disney+, Globoplay, Paramount e Amazon Prime Video
Gênero: Série de romance distópico Temas: Totalitarismo, papéis de gênero, religião, mercantilização do corpo feminino, violência
Classificação: 18 anos (A18) Nossa classificação: 18 anos (A18)
Justificativa: A série contém cenas explícitas de abuso sexual e violência de gênero, podendo causar gatilhos.

*Este texto integra a mobilização do Ariadnes nos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres entre os dias 25 de novembro, Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, e o dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos.

Por Maria Vital


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