
Para além do traço de personalidade noveleira, parte da minha pesquisa de mestrado envolve estar em contato com as narrativas de diversas telenovelas brasileiras ao longo das décadas. É a partir delas que nós, telespectadores, nos deparamos com espelhos tanto distorcidos quanto semelhantes às tensões sociais que enfrentamos em sociedade. No caso de Garota do Momento (TV Globo, 2024-2025), somos expostos à violência coercitiva e à anulação do testemunho de Clarice (Carol Castro). Ambientada na cidade do Rio de Janeiro de 1940, a história se inicia quando a personagem, viúva, mãe de Beatriz (Duda Santos) e aspirante ao mercado da arte, conhece Juliano (Fábio Assunção) em uma exposição. Ele, empresário e futuro herdeiro da Perfumaria Carioca, acaba se apaixonando à primeira vista e, de pronto, lhe propõe casamento.
Logo nos primeiros capítulos, somos apresentados ao acontecimento chave da narrativa: Clarice acaba testemunhando um crime de Juliano. Valéria (Julia Stockler), mãe de sua filha Isabel (Maísa) confronta o homem sobre uma promessa de casar-se com ela e mudar para os Estados Unidos em busca de tratamento para a criança, que tem um problema cardíaco. Após uma briga, Juliano a empurra, e ela morre ao cair em uma mesa de vidro. Clarice tenta socorrer a mulher, mas ao perceber o óbito, corre para denunciar o ato e acaba sofrendo um acidente de bonde. É aí que a personagem tem o seu destino nas mãos de Juliano e de sua mãe, Maristela (Lilia Cabral). Ao perceberem sua perda de memória, mãe e filho decidem reescrever toda a vida de Clarice, colocando Isabel como sua filha no lugar de Beatriz e encobrindo o assassinato de Valéria. Com a ajuda do Dr. Pimenta (Xando Graça), eles também passam a dopar a mulher continuamente para bloquear sua memória e manter a ordem narrativa construída para a família.
A violência de gênero, como nos apresenta Lourdes Maria Bandeira (2019), professora e pesquisadora brasileira, ocorre por motivações e situações onde o indivíduo é subjugado por questões de raça, idade, classe, dentre outras, em relação àquele núcleo familiar (p. 450). Para este texto, proponho seguirmos até o capítulo 157, exibido no dia 6 de maio deste ano. Após se recordar da noite do crime, Clarice recolhe suas coisas para ir embora da mansão, mas Juliano a cerca, tentando manipular a situação: “A Valéria, ela foi lá porque ela ia atrapalhar o nosso casamento. Eu não podia deixar isso acontecer”, diz Juliano.
Clarice é apresentada na trama como uma mulher de classe social distinta à de Juliano e Maristela, que comandam o grande império da Perfumaria Carioca. A violência que ambos exercem sobre ela, portanto, acaba sendo persistente e multiforme, envolvendo força simbólica e física, com o objetivo de submeter seu corpo e sua mente à vontade e liberdade da família Alencar (Bandeira, 2019). Assim, compreendemos que, além da violência física exercida contra Valéria, Juliano reconfigura toda a vida de Clarice em nome da sua vontade em viver um casamento pleno com ela — uma plenitude fortemente contestável. A partir de bell hooks (2019), teórica feminista e professora, fica evidente para nós que Juliano tenta esconder as violências que exerce ao tentar controlar a situação de maneira que não sofra nenhum tipo de consequência ou retaliação por seus atos: “Isso é um assunto nosso. Faz muito tempo isso, não tem mais o que fazer com isso. Sou eu e você. A gente dá conta desse segredo. Me perdoa, eu amo você. Vai ficar tudo bem”, insiste ele, apelando ao vínculo íntimo para silenciar a verdade.
Garota do Momento nos coloca frente à representação da violência simbólica gerada na intimidade e privacidade das famílias que, por serem tidas como “normais” e corriqueiras, acabam por manter o sistema hierárquico e de poder (Bandeira, 2019). A violência contra Clarice, especialmente no capítulo citado, é a expressão máxima do controle patriarcal exercido por Juliano, o que a própria personagem reivindica: “Você mandou desovar o corpo, você me privou da minha identidade, me afastou da minha filha, me entregou uma outra criança nos braços que não era minha. E você me dopou durante anos para bloquear a minha memória com aqueles remédios que me deram dores de cabeças terríveis. Pelo amor de deus, Juliano, você me torturou”.
É neste ponto que observamos que parte da luta feminista ganha materialidade: tornar pública a violência sofrida por mulheres, a fim de reconhecer o poder familiar no processo de silenciamento deste problema, que envolve a sociedade em geral (Bandeira, 2019). Percebendo que não conseguiria manipular Clarice, Juliano a tranca no quarto, mas não a impede de gritar. É com a chegada de Maristela que ambos articulam as possíveis consequências, caso a situação se torne pública. “Mas ela não tem como provar que a Valéria morreu. O máximo que pode acontecer é nós sermos acusados de inventar um novo passado, uma identidade. Nada que um bom advogado não nos liquide a questão, com um juiz comprado, naturalmente”, articula Maristela. Nesta fala, a personagem já demonstra como o sistema — incluindo o Estado e suas instituições de justiça — pode ser instrumentalizado como órgão central de controle para exterminar qualquer possibilidade de ameaça ao patrimônio e propriedade da família (Bandeira, 2019).
O papel de Maristela é fundamental para demonstrar que, ao ser uma mulher que exerce sua autoridade coercitiva a fim de manter a posição de poder de sua família (hooks, 2019), Maristela não só apoia o uso da violência contra Clarice, mas também articula sua internação forçada com a ajuda de Juliano e do dr. Pimenta. “Você vai calar a boca da sua esposa de uma vez por todas. Eu vou ligar para o dr. Pimenta”, diz enquanto prepara uma mordaça e entrega ao filho. Após contê-la durante toda a noite, Clarice é apresentada no dia seguinte como “louca” para a equipe médica. Aos gritos de protesto, ela busca no médico uma tentativa de intervenção contra Juliano e seus crimes. “Percebeu que ela tá completamente lelé? Agora deu pra cismar que eu matei uma pessoa. Eu infelizmente vou ter que pedir pro dr. caprichar no sossega leão. Ela tá completamente fora de si”, mente o homem.
Marcada pelo gênero e sua posição de esposa na hierarquia familiar, Clarice tem seu testemunho anulado pelo marido e seu corpo contido pela força de outros homens. A espetacularização da loucura na narrativa ilustra como acontece a anulação da voz de diversas mulheres em sociedade. Ela representa a forma como a sociedade patriarcal tenta desqualificar testemunhos que ousam romper com segredos familiares e desafiam a ordem social hegemônica. A história desta personagem é um lembrete contundente de que a luta não se restringe à violência física explícita, mas se estende ao combate à violência simbólica e institucional que valida a narrativa do agressor e da “mulher histérica”. A libertação de mulheres como Clarice simboliza a urgência de garantir que seu testemunho seja reconhecido e protegido pelo conjunto da sociedade. Se você passa por alguma violência e necessita de ajuda, entre em contato com a Central de Atendimento à Mulher pelo Disque 180 ou WhatsApp no número (61) 9610-0180.
Por: Natalia Lima Amaral
Serviço:
Título Original: Garota do Momento
Onde Assistir: Globoplay
Duração: 202 capítulos
Classificação Indicativa: 12 anos (A12)
Classificação das autoras: 12 anos (A12)
Gênero: Telenovela/Romance
*Este texto integra a mobilização do Ariadnes nos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres que começaram no dia 25 de novembro, Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, e vão até o dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos.
Referências
BANDEIRA, Lourdes Maria. Violência de gênero: a construção de um campo teórico e de investigação. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2019.
hooks, bell. O movimento feminista para acabar com a violência. In: Teoria feminista: da margem ao centro. São Paulo: Perspectiva, 2019.
