A obra ficcional Olhos d’água (2014), de Conceição Evaristo, é uma coleção de contos com enfoque na população afro-brasileira, abordando a forma como a pobreza e a violência rodeiam esse grupo desde sua chegada ao mundo. Neles, Conceição nos apresenta um grande número de mulheres que são faces de diversas brasileiras acometidas pelas exclusões e desigualdades. Entre mães, filhas, avós e amantes, a autora apresenta Ana Davenga, Duzu-Querença, Natalina, Luamanda, Cida, Zaíta, Maíta, Maria e outras diversas mulheres, todas acometidas pela dor e vulnerabilidade, postas nesse mundo sofrido e obrigadas a celebrar a vida mesmo diante das violências, mortes e reveses.
Conceição Evaristo, professora universitária, mulher negra, mãe e escritora, nasceu em 1946 na cidade de Belo Horizonte, cursou Letras no Rio de Janeiro e é mestre e doutora na área de literatura. Com uma escrita sensível, explora a violência e a exclusão social atribuídas, principalmente, às mulheres negras. Em Olhos d’água, ela traz o costumeiro tom terno de sua literatura, trazendo uma reflexão profunda sobre temas graves. As personagens simbolizam diferentes identidades, desenvolvendo as ficções a partir da vivências dessas faces para além da questão do gênero, mas permeando a questão racial e de classe social. Dessa forma, percorremos um dos contos que narra a história de uma dessas mulheres vítimas de violências em suas diferentes formas de manifestação.

Duzu-Querença
Nesse conto, o terceiro da coleção, somos apresentados às personagens Duzu e Querença, evidenciando já no título se tratar da perspectiva de duas mulheres, ambas negras. Um narrador onisciente inicia anunciando a velha Duzu, uma mulher negra moradora de rua, com as unhas sujas, que gera medo a quem caminha pelas calçadas. Ferida pelo desespero, pela fome e pelo medo, o narrador começa a exposição do passado dessa senhora e os acontecimentos que a levaram até ali.
Quando criança, Duzu foi levada à capital do Rio de Janeiro acompanhada dos pais, com a promessa de uma boa casa, um bom emprego e um futuro de estudos pela frente. Vinda do interior, “era caprichosa, com cabeça para leitura, possuidora de muito saber e sorte”. Zé Nogueira, pescador e pai de Duzu, estava em busca de um novo ofício, na tentativa de proporcionar boas condições de vida para a filha e para a mulher. Com uma família rodeada de pobreza e discriminação racial, além de pais sem condições financeiras para criá-la, Duzu foi deixada com Dona Esmeraldina, proprietária de uma casa que abrigava muitas meninas, trocando trabalhos de limpeza por moradia e comida. Sem seu conhecimento – e sem esclarecimento ao leitor se os pais detinham essa informação –, Duzu passou a morar em um prostíbulo.
Conforme crescia, a criança aos poucos se viu diante de cenas de sexo entre homens e mulheres, sendo inserida em um contexto onde ela era molestada por homens desconhecidos e paga para manter o silêncio. Exposta a essas situações diversas vezes, Duzu adentrou a vida adulta ainda na infância, sem ter conhecimento do que a rodeava e o que tais situações significavam. Os sentimentos, pensamentos e ações da personagem chegam ao leitor através do narrador, de forma a nunca nos deixar saber o que ela realmente pensa e como realmente se sente. Nessas situações de abuso, o narrador conta a história de forma a parecer que Duzu era conivente com tais ações, como se gostasse de determinadas situações. Ao mesmo tempo, deixa claro a falta de maturidade dela e como não parecia saber o significado do que lhe acontecia. Quando ela é estuprada por um desses homens e o relato do abuso chega aos ouvidos da dona do prostíbulo, Dona Esmeraldina apresenta duas “opções”: trabalhar como prostituta para ter casa e comida ou ir embora. Sem rede de apoio e abandonada pelos pais, Duzu obtém um quarto próprio para receber clientes e fica. Em nenhum momento o acontecimento é reconhecido como um estupro.
O Brasil ocupa o segundo lugar no ranking mundial de exploração sexual de crianças e adolescentes, crime previsto no Código Penal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Segundo o Instituto Liberta, a cada hora três crianças são abusadas no Brasil e cerca de 51% têm entre 1 a 5 anos de idade. Todos os anos, 500 mil crianças e adolescentes são explorados sexualmente no país e apenas cerca de 7,5% dos dados são denunciados às autoridades. Entretanto, foi apenas em 2025 que entrou em análise um projeto de lei (PL 2.927/2025) que tipifica como crime o ato de submeter, induzir ou atrair à prostituição alguém que não possa oferecer resistência. O déficit de punições como essa, além da negligência e fiscalização do Estado em relação a políticas já existentes, tornam casos como o de Duzu próximos a realidade brasileira.
Com a dominação masculina se tornando rotina, Duzu passa a viver os dias com homens violentando seu corpo. Abusos e estupros se tornam o cotidiano e, mesmo ao sair do prostíbulo de Dona Esmeraldina, sem ter para onde ir, percorre os bordéis da região sem conseguir sair desse ciclo, levando sua profissão para onde vai.
“Acostumou-se aos gritos das mulheres apanhando dos homens, ao sangue das mulheres assassinadas. Acostumou-se às pancadas dos cafetões, aos mandos e desmandos das cafetinas. Habituou-se à morte como uma forma de vida.” Conceição Evaristo
Ao envelhecer, sem demandas do antigo trabalho e cansada, Duzu passa a morar na rua, sem tanto contato com seus nove filhos e diversos netos. Ela se mostra uma idosa feliz, delirante e fantasiosa. Nas últimas páginas do conto, parece reviver momentos onde a infantilidade e a inocência são permitidas, fase que lhe foi tirada na infância. Sem esclarecimento, morre nas ruas, fantasiada para o carnaval com restos de roupas. Morre animada por uma época onde “mesmo com toda dignidade ultrajada, mesmo que matassem os seus, mesmo com a fome cantando no estômago de todos, com o frio rachando a pele de muitos, com a doença comendo o corpo, com o desespero diante daquele viver-morrer, por maior que fosse a dor, era proibido o sofrer”. Imersa na fantasia, ela é assassinada.
A jovem negra Menina Querença é apresentada no fim do conto, ao passo em que se recorda da avó, Duzu, outra mulher negra. Com um nome que simboliza o ato de querer a alguém ou alguma coisa o afeto, Querença relembra o passado com carinho em um tempo onde sua avó vivia seus últimos anos, entre sonhos e delírios. Conhecida por ser inteligente, empática, com um futuro brilhante, lembra a avó quando menina. Ajuda as crianças mais novas da favela, participa do grupo de jovens da Associação de Moradores e do grêmio da escola. Ainda inserida em um contexto de desigualdade, pobreza e exclusão social, sonha, assim como Duzu, em continuar estudando. Em paralelo com nossa realidade, apenas 14,9% das mulheres negras acima de 25 anos concluíram o ensino superior, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De acordo com o instituto, apenas 56% das pessoas pretas no Brasil concluíram o ensino básico. Duzu faz parte dessa porcentagem, tendo os estudos interrompidos em tenra idade, e o medo que perpassa sua família é que, para além de seus filhos, seus netos também se tornem uma estatística.
Ao saber da morte de sua avó, voltando da escola, a neta relembra a história de sua família. Relembra de quando sua avó ensinou a ela a brincadeira das asas. Lembra de seus sonhos, de como deseja mantê-los vivos e da necessidade de reinventar a vida. Olha para o corpo fantasiado de Duzu e lamenta a solidão da avó desde o momento em que foi posta no mundo, enquanto visualiza suas semelhanças. E Conceição Evaristo nos faz acompanhar a esperança de uma família que, gerada através da exploração sexual contra uma menina cheia de sonhos, fantasia sobre sair de um ciclo vicioso.
Serviço:
Título original: Olhos d’água
Gênero: Ficção
Recomendação de leitura: acima de 17 anos
Justificativa: Abordagem de temas complexos como pobreza, racismo, violência e desigualdade social.
*Este texto integra a mobilização do Ariadnes nos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres que começaram 25 de novembro, Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, e vão até o dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos.
