A 2oª vítima de Fundão: reconhecimento da dor materna

Dez anos. Esse foi o tempo que Priscila Monteiro Izabel foi forçada a esperar para ter reconhecida sua reivindicação. Ela estava grávida quando, há dez anos e um mês, a barragem de Fundão, da Samarco, Vale e BHP, se rompeu no subdistrito de Bento Rodrigues, em Mariana, Minas Gerais. Na fuga do rejeito, ela foi arrastada e perdeu o bebê.

A mineradora não reconheceu o bebê como uma das vítimas fatais do crime-desastre porque não haveria uma Declaração de Nascido Vivo para comprovar. Instituições de Justiça, as mineradoras, governos, todos contabilizam nesse tempo 19 vítimas, duplicando a perda de uma mãe. Mas na data que marcou uma década do crime, a Prefeitura de Mariana se tornou o primeiro ente estatal a demarcar que Arunna ou Abnner (os nomes que Priscila já tinha escolhido para a criança) foi a 20a vítima fatal, em uma publicação no Instagram oficial na qual enumerou os nomes dos mortos do dia 5 de novembro de 2015.

Um gesto simbólico e histórico importante, promovido pela comunicação pública. Por outro lado, o jornalismo comercial tem sido, ao longo dessa década, cúmplice desse apagamento. Contraditoriamente, até mesmo os poucos veículos que noticiaram o caso de Priscila, como UOL, BBC Brasil, Agência Brasil, perpetuam o número oficial. Alguns veículos jornalísticos alegam não poder trazer números de vítimas distintos daqueles considerados oficiais – e assim crimes como genocídios, chacinas, ditaduras, são escondidos ou minimizados atrás do escudo de dados oficiais.

Essa subserviência do jornalismo atende os interesses das corporações e nega a uma mulher o direito ao luto público por seu bebê, além de reparação – ainda que nenhuma compensação material ou penal seja capaz de, de fato, reparar uma vida.

É, ainda, uma profunda violência de gênero, ao negar a crença na palavra de uma mulher. A Organização das Nações Unidas (ONU) já reconhece que meninas e mulheres sofrem impactos desproporcionalmente negativos em desastres e contextos de mudanças climáticas, o que aprofunda desigualdades históricas e estruturais.

Na COP 30, em Belém, o governo brasileiro anunciou diretrizes de proteção a mulheres e meninas em desastres climáticos, parte do Plano de Ações Integradas Mulheres e Clima. Um dos eixos das diretrizes, ainda em elaboração, prevê “Prevenção e eliminação da violência baseada em gênero (VBG) em emergências climáticas, incluindo mecanismos de proteção, abrigamento seguro, saúde e direitos sexuais e reprodutivos (SDSR) e acesso à justiça”.

Além de ter sofrido uma violência de gênero institucional por ter o reconhecimento de sua maternidade negado, Priscila teve negado o acesso à justiça. Pior: o jornalismo, em vez de dar visibilidade à sua luta, preferiu por 10 longos anos (ainda prefere, para dizer a verdade) ecoar o discurso desumanizador das mineradoras, cometendo violência de gênero midiática.

Nada de novo sob o sol de um jornalismo historicamente conformado sobre valores masculinos, que dá mais valor à palavra dos homens (e dos homens executivos de grandes empresas), que ignora o sofrimento com perspectiva de gênero, que impõe barreiras estruturais para mulheres ocuparem cargos de direção e gestão, que aloja temas relevantes para mulheres e grupos minorizados em espaços segregados, como se estivessem à parte do “mundo geral”.

Por Karina Gomes Barbosa

*Este texto integra a mobilização do Ariadnes nos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres que começaram 25 de novembro, Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, e vão até o dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos.

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