Por que novelas sempre punem mulheres que praticam aborto?

Rita (Nanda Costa) é força, resistência e luta por um direito que nunca deveria ser negado em Segunda Chamada. Foto: Divulgação.

Telenovelas sempre fizeram parte do imaginário brasileiro desde a chegada da TV e, com sua virada realista, passaram a trazer situações cotidianas que refletem as experiências da sociedade e aproximam o telespectador.. Entretanto, muitos temas ainda são considerados delicados e geralmente são ignorados ou tratados de forma velada, frequentemente associados ao crime, como é o caso do aborto.

Atualmente, o aborto é considerado crime no Código Penal brasileiro, com exceções em casos específicos: risco de vida para a gestante, gravidez resultante de estupro ou anencefalia fetal. Uma ação no STF discute a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, e já recebeu votos favoráveis  dos ministros Rosa Weber e  Luís Roberto Barroso. O julgamento foi retomado recentemente, mas está suspenso após pedido de destaque do ministro Gilmar Mendes, que pediu análise no plenário físico. A descriminalização, portanto, refere-se ao debate sobre deixar de considerar crime a interrupção voluntária da gravidez, ou deixar de criminalizar mulheres que abortam.

Apesar de telenovelas abordarem temas como gravidez na adolescência, ainda é possível identificar fortes traços conservadores. Em Três Graças, por exemplo, a jovem Joélly (Alana Cabral) engravida na adolescência e, mesmo que pela lei ela não pudesse optar pela interrupção da gestação, a trama não abre espaço para discutir o assunto. Em diálogo com a amiga Kellen (Luiza Rosa), quando questionada sobre seu desejo de ser mãe, a palavra “aborto” sequer é mencionada. Essa ausência evidencia como a telenovela brasileira assume uma postura tradicional em relação à maternidade e aos direitos reprodutivos, além de divergir da realidade do país, onde mulheres, de fato, realizam abortos. 

Além disso, quando o tema surge, aparece sempre pelo ponto de vista de Raul (Paulo Mendes), que tenta manipular Joélly para que realize um aborto mesmo contra sua vontade, apesar de ela afirmar repetidas vezes que não quer interromper a gestação. O mesmo padrão se deu quinze anos antes na história de sua mãe, Gerluce (Sophie Charlotte): mantida em cárcere privado e coagida a ter relações com Jorginho Ninja (Juliano Cazarré), ela engravida e também sofre tentativa de manipulação para abortar. Anos depois, a trama reforça a figura masculina que retorna “para pagar de bom pai”, apesar das violências que cometeu.

Essa é a mesma novela que consegue trazer o enredo de uma vilã que trafica crianças, mas não consegue colocar a pauta do aborto sem que seja de forma extremamente violenta e protagonizada por um homem.

Ainda assim, algumas novelas já tocaram no tema do aborto. Em A Dona do Pedaço (2019), o assunto aparece dentro do padrão recorrente: mulheres que abortam acabam morrendo, reforçando o medo em torno do procedimento, consequência direta da clandestinidade. A trama conta a história de Edilene (Cynthia Senek), jovem empregada e filha do motorista da rica família Guedes. Após ceder ao interesse do patrão, Otávio (José de Abreu), engravida e, pressionada, é forçada a realizar um aborto clandestino que resulta em sua morte, mostrada na novela com a personagem sangrando até morrer nos braços do pai.

Nesse mesmo ano, a Globo estreou um novo projeto Segunda Chamada, que apesar de ser uma série segue essa mesma linha tratada nas novelas. Rita (Nanda Costa), uma mãe de três filhos, aguardava na fila do SUS há muito tempo para realizar o procedimento de laqueadura e evitar novas gestações. É importante pontuar que a personagem tinha um problema de saúde que a impedia de usar anticoncepcional.

Quando ela finalmente consegue o direito de realizar a operação, descobre que não poderia fazer a ligadura das trompas porque estava grávida do quarto filho. Ela então decide realizar um aborto clandestino e sofre sequelas graves. Além disso, tem grande receio de procurar ajuda médica e ser denunciada; entretanto, é convencida pelos professores do lugar onde estuda.

Mesmo com a ajuda médica, ela infelizmente não resiste e morre.

Mais recentemente, a novela Vai na Fé colocou o assunto em pauta também durante uma aula de Lumiar (Carolina Dieckmann), professora de Direito em uma universidade. Uma de suas alunas, Alice (Laiza Santos), pediu ajuda à professora para socorrer uma amiga que sofreu um abuso, teve seu direito de realizar o aborto negado e acabou recorrendo ao clandestino. A vítima foi denunciada e presa. Dentro desse contexto, uma das personagens principais da trama, que fazia parte do núcleo evangélico, Jennifer (Bella Campos), se mostra contra a prática do aborto e explica que, se a mãe dela tivesse realizado o procedimento, ela não teria nascido. É importante ressaltar que sua mãe foi vítima de abuso e que Jennifer é fruto do estupro cometido por Theo (Emilio Dantas) contra Sol (Sheron Menezzes).

O UOL, por meio do bloco Notícias da TV, uma das principais fontes dessa crítica, destaca que personagens que abortam quase sempre são construídas sob estereótipos de mulheres pobres, desesperadas e tratadas como criminosas. Não por acaso, uma das poucas exceções, Nana (Fabiula Nascimento), da novela Bom Sucesso (2019), aborda o tema de forma mais complexa. Mulher rica e executiva, Nana teria condições de criar o filho ou realizar o procedimento em segurança no exterior. Mesmo assim, sua possível decisão é tratada superficialmente, e ela acaba perdendo o bebê por causas naturais. Assim, o tema permanece velado e estigmatizado.

Outra produção da TV Globo que abordou o tema foi Malhação: Toda Forma de Amar (2019–2020), em que a médica Lígia (Paloma Duarte) socorre uma jovem que havia realizado um aborto clandestino em condições precárias. Considerando que Malhação sempre teve como público-alvo adolescentes, a narrativa reforça uma lógica de terror e criminalização do aborto, criando medo e ampliando o tabu desde a programação juvenil até a adulta.

Também merece destaque Topíssima, novela da Record em que telespectadores protestaram  na porta dos estúdios contra a cena de aborto e a morte da personagem Jandira. Moradora de comunidade e grávida de um golpista, Jandira recorre ao aborto clandestino e morre na clínica, repetindo o padrão trágico aplicado às personagens que abortam.

A partir de bell hooks, compreendemos como discutir questões do corpo feminino envolve analisar o impacto histórico e social da autonomia sexual. Ela evidencia como o acesso a métodos contraceptivos foi fundamental para que mulheres pudessem viver relações sem o medo constante da punição que, muitas vezes, vinha na forma de uma gravidez indesejada, colocando suas vidas em risco diante da clandestinidade do aborto. Para hooks, educação sexual e autonomia corporal são etapas fundamentais antes mesmo de se chegar ao debate sobre aborto.

As histórias dessas personagens reforçam a importância de uma transformação dentro das telenovelas brasileiras para que realidades como essas possam ser retratadas de forma verdadeira e coerente. Apesar de duras, fazem parte do cotidiano do país, onde estimativas indicam a ocorrência de entre 500 mil e 1 milhão de abortos clandestinos por ano. O aborto é uma questão de saúde pública — e a ficção, como espelho da sociedade, precisa tratá-lo como tal. Mulheres são constantemente violentadas e sempre punidas pela violência, mesmo que sejam as vítimas; essa é a realidade da sociedade e das telenovelas brasileiras.

Se você passa por alguma violência e necessita de ajuda, entre em contato com a Central de Atendimento à Mulher pelo Disque 180 ou WhatsApp no número (61) 9610-0180.

Referências: 

Por Marcela Pauline

*Este texto integra a mobilização do Ariadnes nos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres que começaram 25 de novembro, Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, e vão até o dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos.

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