O caso Salabert vs. Ferreira e os limites da liberdade de expressão no Brasil

A recente deliberação do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que manteve a condenação do deputado federal Nikolas Ferreira por danos morais contra a deputada Duda Salabert, no dia tal, suscita uma análise aprofundada sobre a relação entre identidade de gênero, discurso de ódio e os contornos da liberdade de expressão no ordenamento jurídico brasileiro. O episódio evidencia a persistência da transfobia institucional e a crescente tensão em torno da representatividade de minorias em espaços de poder.
A decisão judicial consolida um importante precedente, e vai de encontro com as recentes resoluções do STF sobre o Marco Civil da Internet, e também sobre a liberdade de expressão, que não constitui um direito absoluto e não pode ser invocada para legitimar práticas discriminatórias que atentem contra a dignidade. Ao considerar a recusa em reconhecer a identidade de gênero da parlamentar como um ato ilícito, o STJ alinha-se à jurisprudência que equiparou a transfobia ao crime de racismo. Esse entendimento reforça um marco civilizatório fundamental, no qual o respeito à identidade de indivíduos transgênero é tratado como uma obrigação tanto do Estado quanto da sociedade no geral.
O caso extrapola o âmbito individual de crenças pessoais, justamente para simbolizar um conflito sociopolítico mais amplo, que estaria se opondo à um projeto de sociedade inclusivo e plural para admitir uma agenda que instrumentaliza a intolerância, a covardia, a falta de debate e, principalmente, a impunidade. A presença de parlamentares trans no Legislativo representa uma ruptura significativa com a hegemonia cisheteronormativa histórica na política brasileira, o que preocupa a bancada evangélica e principalmente os conservadores que se apresentam hostis e somente se manifestam para cometer violências políticas, principalmente quando se trata de gênero.

Sob a ótica dos estudos de gênero, mais especificamente a partir das contribuições de Judith Butler, entendemos que a linguagem é performativa, ou seja, produz efeitos materiais na realidade. O ato de nomear ou de se recusar a nomear corretamente um indivíduo é uma ferramenta de poder que pode validar ou invalidar sua existência social. A partir dela, nós só passaríamos a fazer parte do corpo social a partir da aprovação, da identidade apresentada, pela perspectiva do outro.
Nesse sentido, o discurso transfóbico opera como um mecanismo de exclusão, visando justamente retirar a legitimidade e a inteligibilidade de corpos dissidentes da esfera pública, para rejeitá-los dentro do corpus social, e consequentemente reprimi-los. Portanto a decisão do STJ não apenas repara um dano individual, mas também sinaliza um compromisso do Judiciário em proteger grupos vulnerabilizados. O desafio constante e impetuoso do nosso Supremo Tribunal é pressionar a aplicação e a continuidade de políticas públicas assim como a disseminação de uma cultura que garanta ambientes seguros para a plena participação de todas as pessoas, consolidando o direito à identidade como um pilar inegociável da democracia brasileira.
O banheiro inclusivo para mulheres cis
No cenário político e social do Brasil, a violência contra identidades dissidentes se manifesta em um espectro que vai desde oportunistas no palanque do Congresso Nacional até a porta de um banheiro público. De um lado, temos a condenação definitiva do deputado Nikolas Ferreira por transfobia contra a deputada Duda Salabert, um ato de violência verbal calculado, transformado em espetáculo político, já que o deputado é amplamente conhecido por sua espetacularização do ódio e tentativas de lacração.
Do outro lado, em um recente e infeliz incidente em Pernambuco, onde um casal impediu uma mulher cisgênero de usar o banheiro feminino por confundi-la com uma mulher trans. Quando paramos para pensar em ambos, os eventos aparentam ser casos isolados, mas não são, e, embora distintos, são facetas da mesma perigosa doença social da direita “protetora” das crianças. Essa obsessão em policiar os corpos e em impor uma visão restrita e frágil do que significa ser homem ou mulher é sintomática. Vemos exemplos diários do que o ódio causa a esses corpos e identidades. Essa retórica de ódio não existe no vácuo e não nasce do nada: é um discurso oportunista, que supostamente autorizaria a vigilância cotidiana por parte dos ditos cidadãos de bem, revelando uma crise profunda na forma como o gênero é compreendido e performado em nossa sociedade.

Podemos analisar a trajetória do deputado mais votado de Minas Gerais como um enorme estudo de caso sobre as maneiras utilizadas para a instrumentalização do preconceito. Seus ataques sistemáticos, que culminaram na condenação noticiada pelo G1, “nunca foram sobre opinião”, declarou Duda Salabert, para quem a decisão seria uma “vitória da comunidade LGBTQIA+”. Não é à toa que Nikolas fala o que fala, especialmente quando usa a tribuna para negar a identidade de Salabert ou quando aparece de forma ridicularizante com uma peruca no Dia da Mulher. Ele executa um roteiro político muito claro, que é o de desumanizar minorias para solidificar seu capital político junto a uma base reacionária, mesquinha, retrógrada e conservadora.
Aqui, a teoria de Judith Butler nos ajuda a ir além do óbvio, ela distingue “performance” de “performatividade”. A atuação de Ferreira com a peruca é uma performance consciente, teatral, destinada a ridicularizar. Contudo, o alvo real de seu ataque é a performatividade de gênero de Duda Salabert e de todas as pessoas trans. A performatividade, segundo Butler, não é um ato isolado, mas uma série de repetições e citações de normas sociais que, ao longo do tempo, constroem e solidificam a identidade de gênero que o corpo quer manifestar, independentemente do gênero designado originalmente pela tão acusada/ativada biologia que os conservadores gostam de acionar sempre como argumento.
O ataque de Ferreira é uma tentativa violenta de interromper essa performatividade, de declará-la inválida e ilegítima e é aqui que o incidente de Pernambuco se conecta de forma assustadora. O casal que barrou a personal trainer do banheiro agiu como uma espécie informal de vigilantes do gênero, executando na prática a vigilância que o discurso de Ferreira legitima. Isso expõe o verdadeiro alvo do pânico moral, ou seja, qualquer um que escape à norma como a personal trainer que, mesmo sendo uma mulher cisgênero, foi punida por não se conformar à imagem estereotipada de feminilidade que o casal usou como base para exclui-lá, utilizando a imagem de seu corpo, mais musculoso, para torná-la “ilegível” dentro da frágil cartilha de gênero que eles defendiam.
Judith Butler chama isso de operar dentro da “matriz de inteligibilidade”. A sociedade constrói uma matriz que define quais corpos e identidades são “reais” e “naturais” (inteligíveis) e quais são “falsos” ou “ameaçadores” (ininteligíveis). O casal, ao confrontar a mulher, estava policiando as fronteiras dessa matriz, e ambos se sentiram confortáveis e no direito de interrogar e, posteriormente, barrar um corpo que para eles não se encaixava. A defesa absurda de que “tentaram ajudar” e que foram interpretados de forma errada revela a naturalização dessa violência, já que na visão deles, estavam “ajudando” a manter a “ordem natural” do banheiro, protegendo-o de um corpo que julgaram não pertencer àquele espaço.
A transfobia é a ponta de um iceberg dentro de um sistema de controle muito mais amplo. O pânico em torno do “banheiro trans” nunca foi sobre segurança, e sim sobre o controle e a manutenção de normas de gênero rígidas e excludentes. Esses casos provam que, quando abrimos a porta para policiar corpos, ninguém está seguro, pois os critérios para ser um “homem de verdade” ou uma “mulher de verdade” são arbitrários e podem ser usados contra qualquer um. Nikolas Ferreira e outros políticos que atacam pessoas trans estão reforçando as normas mais violentas e excludentes, dando permissão para que todos se tornem fiscais da identidade alheia.
A linha que conecta o discurso de ódio na Câmara dos Deputados ao confronto no banheiro de um shopping é direta e causal. Não podemos lutar pela causa trans sem lutar contra a tirania da norma. Os direitos de cada indivíduo à autodeterminação só existem sem a existência de uma necessidade de se conformar a um roteiro pré-aprovado de feminilidade ou masculinidade. A condenação de Ferreira é uma vitória legal crucial, mas a batalha cultural e social é muito mais profunda, e exige que desafiemos todos a não terem medo do gênero, para que possamos expandir nossa capacidade de reconhecimento, a acolher a diversidade de corpos e expressões, e a entender que a verdadeira ameaça não é quem pode entrar em qual banheiro.
Por Sophia Helena Ribeiro
