Azul é a cor mais quente: fetiche masculino disfarçado de representatividade sáfica

Na imagem, Emma, uma das protagonistas, beija a bochecha de Adèle. Elas estão em primeiro plano e em um ambiente público, que parece ser bastante colorido.
Créditos: cena do filme

Azul é a cor mais quente é um filme francês, lançado em 2013 e dirigido por Abdellatif Kechiche. Com três horas de duração, o longa trata sobre o romance entre Adéle (Adèle Exarchopoulos), uma professora infantil, e Emma (Léa Seydoux), uma pintora que trabalha para expor suas artes em exposições. 

No início da trama, Adèle se relaciona com um homem, mas percebe que, na verdade, não se sente atraída. Então, ela entra em um período de autodescoberta e conhece Emma, uma mulher de cabelo azul que chama bastante sua atenção. Depois disso, a professora começa a questionar sua orientação sexual e a fantasiar como seria um relacionamento com Emma.

Mas Adèle não passa por esse processo alheia ao preconceito: suas “amigas” praticam bullying com ela por ela ter ido a uma boate gay e começam a questioná-la sobre já ter sentido atração por elas enquanto trocavam de roupa. A discriminação é tamanha que Adèle fica confusa e se sente pressionada a negar seu processo de autodescoberta.

Infelizmente, esse contexto não se limita à ficção: como mulher lésbica, sei que o processo de autodescoberta pode ser confuso e, muitas vezes, solitário. Mas, voltando ao filme, Adèle começa a se relacionar com Emma e o longa retrata bastante as diferenças entre suas respectivas realidades e famílias. Enquanto Emma tem uma família que acolhe o casal, Adèle é filha de pais conservadores, que acreditam que a relação das duas se restringe à amizade.

Uma questão muito forte no filme são as excessivas cenas de sexo entre as personagens. Cenas tão frequentes, explícitas e claras que chegam ao ponto de deixar o espectador constrangido e desconfortável. Além disso, as atrizes revelaram em entrevista que sofreram diversos abusos nas gravações, desde serem forçadas a gravar as cenas de relação sexual por 10 horas seguidas, quando já estavam machucadas e sangrando, a terem seus corpos tocados pelo diretor, que “queria mostrar como era para ser feito”.

Ainda, Adèle comentou que se sentiu muito humilhada, vulnerável e exposta. Ela conta que teve que fingir um orgasmo por seis horas e, depois desse filme, ficou traumatizada em relação a protagonizar cenas de sexo. 

O longa é, claramente, para satisfazer os olhares masculinos sobre os corpos de mulheres lésbicas: os movimentos de câmera lentos e romantizados sobre as personagens, as cenas explícitas e detalhadas de seus corpos, além do fato de serem mulheres brancas e magras, consideradas socialmente como “dignas de prazer”. 

O filme poderia acrescentar muito socialmente, no sentido de trazer representatividade a mulheres lésbicas, mas, infelizmente, não foi isso que aconteceu: a produção apenas fetichizou os corpos de mulheres e as tratou como objetos sexuais. Dias atrás, por exemplo, conversei com uma amiga sobre essa produção e uma das frases ditas por ela me marcou. “Eu sei que o filme é péssimo, mas, por muito tempo, foi o que eu tive acesso como representatividade sáfica.”

Depois disso, fiquei pensativa sobre quantas meninas, assim como minha amiga, também se basearam nesse filme como uma forma de se entender e afirmar sua orientação sexual. Foi aí que tive a ideia de pesquisar as críticas da produção e, não surpreendentemente, a maioria dos resultados que encontrei foram de homens heterossexuais expondo sua misoginia, discriminação e fetiche erótico.

O Bruno, por exemplo, comentou na aba de críticas do site “adorocinema.com”: “ótimo filme! Talvez cause estranheza pras tias da assembleia, mas ninguém liga pra elas mesmo”.

Enquanto Romildo dá um “conselho” aos futuros espectadores: “Deveriam fazer o 2° filme. Recomendo assistir com sua companhia”.

Em meio a tantos comentários machistas e sexistas, encontrei o de Clara: “Achei horrível, só tem sexo. Cadê o amor? Não vejam isso, apenas se forem sexualizar as lésbicas! machistas e homofóbicos”.

Esses comentários deixam claro o quanto, estruturalmente, estamos inseridas em um sistema no qual as mulheres são sexualizadas e objetificadas como corpos com as únicas e exclusivas funções de dar prazer e servir aos homens. Homens esses que se sentem proprietários dos corpos femininos, de suas histórias e de suas experiências. 

Além disso, o comentário de Clara – um dos poucos que fizeram uma crítica negativa ao longa – explicita o quanto grande parte das pessoas que está atenta a  questões de violência de gênero é mulher, uma vez que, provavelmente, essa espectadora, assim como muitas, se sentiu incomodada e tocada ao ver o abuso que as personagens estavam sofrendo. Já os homens, infelizmente, pouco pensam nessas questões, muito pelo contrário, elas sequer são relevantes ou minimamente interessantes para a maioria deles. 

Ah, e outro fator importante a ser comentado é que mesmo o filme contendo todos esses abusos e sofrimentos femininos, arrecadou 8 milhões de dólares na bilheteria da França e ganhou o prêmio Palma de Ouro em 2013. Afinal, para os grandes produtores e diretores, pouco importa o sofrimento de duas jovens atrizes, violentadas e vulneráveis. 

Por Maria Clara Soares

Serviço

Título original: La vie d’Adèle

Onde assistir: Prime video

Classificação indicativa: 18 anos (A18)

Classificação da autora: 18 anos (A18)

Justificativa: Muitas cenas de relação sexual ao longo do filme, que, na verdade, são cenas de violência sexual a que as atrizes estavam sendo submetidas nas gravações.

Gênero: Drama e romance

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