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Ariadnes lança mapeamento inédito sobre gêneros e sexualidades na UFOP

Integrantes do Ariadnes, observatório de mídia, gêneros e sexualidades da UFOP, em uma das formações promovidas pelo projeto. Foto: Divulgação/Ariadnes. O Ariadnes – observatório de mídias, gêneros e sexualidades lança a primeira edição do Mapeamento de ações de gêneros e sexualidades na universidade, uma publicação que pretende cartografar as iniciativas nestas temáticas desenvolvidas na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
O levantamento foi feito em duas etapas: na primeira, nós elencamos os grupos, projetos, coletivos, ações. Depois, convidamos todas as iniciativas a responderem um questionário para conhecermos o perfil de cada uma delas. O Ariadnes encontrou 24 ações na UFOP, das quais 12 responderam ao formulário.
A publicação traz composição, área do conhecimento, financiamento e unidade de realização, entre outras informações, que permitem um panorama inicial da presença de gêneros e sexualidades nas ações da universidade.
Os dados apontam para a necessidade de consolidação das iniciativas, assim como a urgência de ações em rede. Também mostram locais e grupos ainda não atuantes.
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A deturpação do que é o amor em “A Melhor Mãe do Mundo”
A Melhor Mãe do Mundo é um filme de 2025, dirigido por Anna Muylaert, que retrata a vida de Gal (Shirley Cruz), uma mulher negra, catadora de reciclagem de São Paulo que sai em uma jornada com seus filhos pelas ruas da cidade para fugir do marido Leandro (Seu Jorge). Gal sofre violência doméstica e decide dar um basta na situação e denunciar o marido, mas o filme deixa confuso se a denúncia foi efetivada.

Gal e Rihanna em um momento de acolhimento mútuo. Foto: Divulgação. Segundo os dados do Mapa Nacional da Violência de Gênero, 58.549 mulheres foram vítimas de violência de gênero em São Paulo registrados por boletins de ocorrência, mas a pesquisa afirma que no Brasil mais de 58% das mulheres não procuram uma delegacia após a violência. Segundo a pesquisa Visível E Invisível: A Vitimização De Mulheres No Brasil, realizada em 2023, 65,6% das vítimas de violência contra a mulher eram negras.
A primeira cena do filme acontece em um ambiente de denúncia e resume muito bem o longa. Gal, muito nervosa, é questionada sobre a razão de estar denunciando a violência que sofreu, o que aconteceu e se é casada no papel com o agressor, coisa que não é. Logo em seguida, ela é questionada sobre por que o homem que está sendo denunciado lhe bateu e responde que foi por causa de bebida, que não é a primeira vez que acontece, já que toda vez que ele está bêbado quer transar e se ela não transa ele bate nela. A protagonista chama o cônjuge de “coitado”, porque já que é mulher dele precisa transar. Ela ainda fala da preocupação com os filhos Rihanna e Benin, que não são de Leandro.
Gal escolhe fugir da violência. A catadora vai buscar seus filhos na escola, mas avisam para ela que Leandro já buscou as crianças. Desesperada, ela vai até em casa e leva os meninos para uma “aventura”. O percurso de carroça até a casa de uma prima é chamado de aventura durante os três dias, nos quais ela faz o que pode para alimentar e entreter as crianças. Inclusive, pedir dinheiro para um homem que ela acreditava ser de confiança, mas que a assedia e quer trocar dinheiro por sexo, acordo que estava fora de cogitação para a catadora.
Depois de muito perrengue, o trio chega à casa da prima de Gal, Valdete. Na casa moram Val, seus dois filhos, Anivaldo, marido de Val, e o pai de Anivaldo.
Por lá, Gal não recebe tanto apoio quanto gostaria. Val fala que é algo normal, e dá o exemplo do pai de Gal, que batia na mãe dela. Além das primas já terem visto situações de violência contra a mulher, o filme e as reações de Rihanna levam a entender que os filhos de Gal presenciaram a violência. Eles não são um caso isolado da ficção: segundo o Mapa Nacional da Violência Contra a Mulher, 71% das violências têm testemunhas, e dessas, 71% são crianças.
Depois da fuga o agressor encontra a protagonista, pede desculpas e ela aceita, logo em seguida a pede em casamento. Nesse momento parece que o ciclo de violência vai permanecer, assim como na realidade na qual em 18% dos casos de violência doméstica a mulher permanece no relacionamento. O filme retrata uma tentativa de violência de Leandro contra Gal durante um episódio de bebedeira. A mulher ajuda o agressor a tomar banho para melhorar e ele começa a tentar forçá-la a fazer sexo e ela se nega. O surto de agressão física não vem, mas os xingos permanecem, inclusive afirmar que por ser mulher dele essa é a função dela; ele a acusa de sempre pensar mais nas crianças e diz que a filha dela estava começando a ficar mais velha.
A ficha de Gal cai e ela foge novamente daquela situação, ela rompe o ciclo, ela sente medo de a filha sofrer algo na mão do cônjuge. No final, Rihanna admite à mãe que tinha medo de Leandro e a chama de a melhor mãe do mundo.
Durante a história, Gal fala diversas vezes sobre amor, que ela ama Leandro e ele a ama, mas o amor machuca? O amor estupra? O amor humilha? Assim é a forma que Leandro trata sua “esposa”, ele e tantos outros homens brasileiros que acreditam que a mulher é um objeto descartável que precisa sempre satisfazê-los.
O longa ainda retrata o silêncio e o apoio masculino de outros homens frente a violências sofridas. O marido de sua prima Val, Anivaldo, é o responsável por levar o agressor até onde a protagonista estava escondida. Ele também aceita o churrasco que Leandro proporciona como uma tentativa de esconder o problema. O acordo secreto masculino de apoiar uns aos outros independente do que aconteça permanece para além da ficção, casos de violência cometida por jogadores de futebol, como Robinho, Daniel Alves e Cristiano Ronaldo são exemplos na esfera geral que são midiatizados, e quantos não são? O silêncio masculino mata mulheres.
A Melhor Mãe do Mundo é uma obra pautada na realidade, a diferença é que muitas mulheres não conseguem romper o ciclo, muitas vezes por não terem para onde ir, não terem como se sustentar. Apesar da Lei Maria da Penha e da Lei do Feminicídio, que são grandes passos para tentar mitigar a violência contra a mulher, políticas públicas de acolhimento precisam ser incentivadas, às vezes o ciclo de violência continua por dependência financeira e material, às vezes falta um espaço de escuta e acolhimento psicológico.
O amor não mata! O amor não agride!
Caso esteja passando por alguma situação de violência e precisa de ajuda procure uma delegacia especializada de atendimento à mulher na sua cidade ou entre em contato com a Central de Atendimento à Mulher pelo número 180 ou Whatsapp no número (61) 9610-0180.
Serviço:
Título original: A Melhor Mãe do Mundo
Onde assistir: Netflix
Gênero: Drama
Classificação: 14 anos (A14) Nossa classificação: 16 anos (A16)
Justificativa: O filme contém cena de tentativa de violência sexual.Por Ana Beatriz Justino
*Este texto integra a mobilização do Ariadnes nos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres entre os dias 25 de novembro, Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, e o dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos.
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“Garotas mortas” como essência da cultura do ódio que nos assassina
Com título cru e impactante, adentramos na leitura de um tema tão difícil: o feminicídio, que, em suma, é o assassinato de mulheres por razaão de seu gênero. O livro em formato de jornalismo literário relata três casos de feminicídio – sem solução – de jovens: Andrea Danne, de 19 anos; Maria Luísa Quevedo, de 15; e Sarita Mundín, de 20. Elas foram mortas em suas cidades de origem, respectivamente, San José, Presidencia Roque Sáenz Peña e Villa Nueva.
Essas histórias são narradas de forma cuidadosa e especialmente tocante, contendo toda a subjetividade dos interiores da Argentina dos anos 80 e das vivências de Selva Almada, de onde origina-se a autora e as vítimas. Além disso, conta com o olhar dela como mulher e também vítima de preconceito.

A luta pelo direito de ficarmos vivas é coletiva. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil Os casos investigados no livro assemelham-se mesmo que de longe. Eles são iguais em meio a tantas diferenças pois tratam-se de meninas muito jovens assassinadas única e exclusivamente por serem meninas. Cada um com sua particularidade, como Andrea, que foi encontrada em sua própria cama, sem sinais de maiores violências, senão seu peito repleto de sangue. Ou Maria Luísa, estuprada, estrangulada e deixada em um terreno baldio. E Sarita, que desapareceu sem rastros e nunca houve comprovação real de sua morte, pois não há corpo.
O desenrolar do longo trabalho de Almada resulta na sensibilidade de casos pessoais, viagens de apuração, relatos e imagens difíceis de serem vistas. Ele traça muito bem toda a linha entre a tradição regional da violência contra a mulher – com a presença de outros casos sem resolução e que continuam acontecendo –, a normalização do abuso sexual infantil e feminino como forma de arrecadar dinheiro e a impunidade masculina na crista da onda dessa sociedade.
Ambientação dos crimes
O feminicídio é um crime que se dá como realidade há séculos; ele já foi maquiado como paixão, ciúmes ou crime passional e demorou a ser entendido como uma estrutura de ódio contra nós, mulheres. Muitas Andreas, Maria Luísas, Saritas e tantas outras perderam suas vidas com crimes “episódicos” e também ficaram sem solução. Nesse sentido, o livro relata, por meio de uma escrita pessoal, e diria até mesmo intimista ao compartilhar sua própria jornada, a trajetória de investigação e narração de feminicídios ocorridos na década de 80 na Argentina mas que continuam tão atuais.
Selva Almada, escritora argentina e graduada em Literatura, realiza com maestria a função de contar os acontecimentos com um olhar holístico e narrado na perspectiva de gênero e política. Ela elabora os onze capítulos com a tentativa de compreender os casos presente por toda criação, tanto pelas respostas daqueles crimes, sem solução até o momento, quanto da barbárie que a acompanha pessoalmente por toda a sua vida, da violência contra a mulher e a autorização social de tudo isso.
Garotas mortas é destroçador, inquietante e belo – no sentido da produção – pois há nele algo que se destaca: o caráter pessoal e representado quase como um diálogo, compartilhando aqueles medos, angústias e o peso de ser mulher na sociedade, seja ela qual for. O interior da Argentina, onde se originam os crimes, mostra-se rapidamente não aquele lugar pacato e harmônico, mas um local onde o abuso de crianças é normalizado por conta da questão financeira e os crimes contras as mulheres não são investigados ou minimamente aprofundados; quem dirá encontram um culpado.
Nesse cenário, muito bem descrito, causa-me um incômodo forte ao pensar na infância e vida adulta dessas mulheres, como local constante de incerteza e sem saber se seriam as próximas vítimas de crimes insolucionáveis. E, pior, torná-los episódicos, no sentido de não traçar um modelo estrutural, uma questão muito maior do que somente uma vida perdida, mas o feminicídio como crime quase que inerente àquela sociedade adoecida. Na contramão de tudo isso, Garotas mortas nos traz o desconforto da configuração do mundo, com palavras sensíveis e com prática jornalística capaz de escutar o lado das vítimas com atenção, afinal, como ser neutra em relação à brutalidade?
A postura questionadora feminista adotada aqui integra e humaniza as mulheres de forma fundamental, ainda mais porque elas são colocadas em local de vulnerabilidade e fragilidade emocional, financeira e social, mostrando sua realidade e atenta às pautas mais profundas de cada uma. A autora busca inserir o feminicídio em um contexto de violência estrutural contra mulheres e, ao mesmo tempo, realiza a tarefa de dar dignidade a essas vidas individualmente.
Almada busca por respostas por meio de uma vidente, a “Senhora” – na tentativa de contato com as meninas – e por meio de familiares e amigos, mas nunca em tom de culpabilização delas, como fizeram outros veículos na época. Ao relatar, em meio ao processo de redemocratização da Argentina, com perspectiva de gênero, a escritora lidou com reportagens escritas de formas distorcidas e, muitas vezes, em entonação de fofoca com intuito de gerar movimento nas pequenas cidades.
Essas abordagens são comuns na mídia, colocando a violência misógina como um acontecimento desconexo em relação ao todo e situada no noticiário policial como “mais um crime brutal” e só. No entanto, o ódio contra o feminino enraizado e realimentado todos os dias é razão suficiente para não só ir adiante com as investigações, mas também para colocar como linha do tempo todas essas garotas mortas unidas e ligadas.


Capa e contracapa do livro. Fotos: Lia Junqueira A perspectiva de gênero, adotada pela escritora argentina, faz exatamente esse movimento de não só escutar outras mulheres com responsabilidade e vontade de entender aqueles homicídios sem respostas, mas ver semelhança entre eles e conseguir colocá-los como um problema inteiro e não só das cidades de San José, Presidencia Roque Sáenz Peña ou Villa Nueva.
Ao contrário do jornalismo policialesco, Garotas mortas não quer encontrar um culpado para dar fim à história de horrores e sim deseja problematizar a norma social – vista como tradição – do feminicídio como prática simplesmente impune e aceita. No vai e volta das páginas é possível se perder entre as três garotas principais e os outros tantos casos expostos, mas a ideia inicial está presente: a banalização da violação dos direitos básicos das mulheres não pode mais acontecer. Não há possibilidade de normalizar a barbárie e isso Selva Almada expõe muito claramente.
O livro destoa das notícias clássicas da época e situa muito bem qual é o contexto, são assassinatos em razão de gênero. Materializando-se como manual de sensibilidade e ética jornalística no contato com fontes, nas escutas respeitosas e informadas, e sem dúvida, da humanização dessas meninas, que mesmo separadas por décadas do contexto da escrita, puderam ter suas subjetividades respeitadas e obedecidas.
Almada nos dá caminhos possíveis para mudança
Soa repetitivo mas é preciso gritar tantas outras vezes e continuar gritando por Andrea, Maria Luísa, Sarita e todas aquelas que continuam sendo mortas novamente, pois como a autora relata: estar vivA é apenas uma questão de sorte. Não é sobre a “personalidade forte”, estar no lugar errado, vestindo roupas “indevidas” ou qualquer outras justificativa idiota para os feminicídios ao redor do mundo.
Todas nós temos relatos infelizes, doloridos e indesejáveis a qualquer mulher, mas ao captar e noticiar com outros olhares, mais humanizados e éticos, pode ser que alguma trajetória seja alterada. O jornalismo com perspectiva de gênero de Selva Almada retrata toda essa angústia de tanto tempo, mas que mesmo assim, não caiu no esquecimento. Há sim uma hora de deixar ir e descansar das vítimas, como nas últimas páginas a autora se despede das meninas por intermédio da “Senhora”, mas ela não é o ponto final da estrutura montada no livro.
Ele excede, explode e extrapola a si mesmo em diversos âmbitos, deixando a memória respeitosa e o legado dessa estrutura que urge mudança. Os sinônimos acima representam também esse ímpeto de incômodo pressionando o peito a todo momento, por mais que não haja conclusão certeira, Garotas mortas me traz, como mulher e jornalista, a força de vontade de fazer diferente.
Serviço:
Título original: Raparigas mortas
Gênero: jornalismo literário; casos reais; crime.
Editora: Todavia (tradução de Sérgio Molina)
Nossa classificação: 18 anos (A18)
Justificativa: O livro trata de temas sensíveis como feminicídio, estupro e outras violências contra as mulheres.*Este texto integra a mobilização do Ariadnes nos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres entre os dias 25 de novembro, Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, e o dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos.
Por Lia Junqueira
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“Tudo é Rio”: um retrato da realidade brasileira
No livro Tudo é Rio, lançado em 2014 e relançado em 2021 pelo Grupo Editorial Record, conhecemos a história de Lucy, uma prostituta, e do casal Dalva e Venâncio. O romance ficcional foi escrito pela autora brasileira Carla Madeira, e aborda temas como agressão física, machismo e violência moral e, a partir disso, tece a conexão entre os protagonistas.

Capa de Tudo é Rio, livro brasileiro best-seller de vendas. Foto: Divulgação A trama conta o início, meio, fim e recomeço da história de amor entre Dalva e Venâncio, um casal apaixonado. Desde o início do relacionamento, Venâncio demonstrava ser uma pessoa bastante ciumenta; em uma das passagens, a mãe de Dalva, Aurora, relata enxergar no genro sinais preocupantes do controle e atenção extrema com sua filha.
“[…] Venâncio sofria de ciúme. Não era um ciúme comum, daqueles que provocam cenas inflamadas, caras emburradas, atitudes intempestivas ou retiradas dramáticas. Era um ciúme calado, profundo, triste. Nas noites em que a casa se enchia de amigos dos irmãos de Dalva, Venâncio ficava sem lugar; vigiava os olhares o tempo inteiro. Não tinha sossego. Procurava a certeza de que tinha razão. Era como se tentasse se preparar para o pior ganhando em troca o consolo de não ser pego de surpresa: eu sabia, eu disse que ia acontecer” – Trecho de Tudo é Rio
Os sinais percebidos pela sogra logo se provaram reais, sendo o estopim um resultado da possessividade de Venâncio. Após alguns anos casados, Dalva engravidou: era um menino, Vicente. A mulher esperava ansiosamente a chegada de seu filho, preparando tudo que era necessário para recebê-lo; em contrapartida, o homem sentia ciúmes. Acreditava fielmente que “naquela barriga crescia um ladrão que ia roubar para sempre a mulher da sua vida”.
“A boca do neném buscava o peito farto e úmido querendo sugar, engolir e ainda tão sem saber. O mamilo se dobrava passando na boquinha pequena, querendo ser pego por ela. Dalva se entregava a uma emoção única, da mais comovente ternura. O momento dela e do filho cegou Venâncio de uma absurda loucura. Ele arrancou o menino dos braços dela e jogou longe, bateu em Dalva, bateu, bateu. Espancou” – Trecho de Tudo é Rio
Venâncio se sente culpado e, com seu filho praticamente morto em seus braços, o leva para uma grande amiga de Dalva e implora para que ela enterre seu filho. Após anos, o casal continua convivendo na mesma casa, mas totalmente sem contato: o amor que havia entre eles tinha acabado, os dois como fantasmas que se arrastam tristes pela cidade. Dalva, impactada pela violência do marido contra ela e seu filho, começa a sair pelas manhãs e retorna no fim da tarde: sai em silêncio e volta da mesma maneira.
O marido todos os dias se martiriza por suas ações, culpando seu pai por tê-lo criado daquela forma, levando-o às suas ações agressivas e seu ciúmes doentio. Buscando esquecer sua vida, começa a frequentar a Casa de Manu, um prostíbulo da cidade. Nesse momento, seu caminho cruza com Lucy, a puta (como gosta de ser chamada) mais requisitada do local. Apesar de seus apelos, Venâncio não deseja seus serviços e a recusa; a partir disso, ela começa a atormentar a vida de Dalva, que passa todos os dias por ali.Após desavenças, Lucy finalmente consegue seduzir Venâncio e, com essa relação, acaba engravidando. Ao procurá-lo em sua casa, é recebida por ele de forma agressiva que, revoltado com a gravidez, a ameaça de morte. Naquele momento, Dalva aparece e sai em defesa da amante, da mulher que carregava agora o filho de seu marido. Depois da discussão, os três não possuem mais contato até que, 9 meses depois, Lucy deixa na porta da casa do casal o menino João, que acabara de nascer. Ali, Dalva viu a oportunidade de ser a mãe que tanto desejava poder ter sido.
O bebê ficava em um quarto, escondido do marido. Após algum tempo, Venâncio descobriu a presença da criança e, ao observar sua esposa com ele, decidiu que tentaria reconquistá-la: comprou presentes para o menino, o ninou e construiu um berço de madeira, deixado nos aposentos de Dalva. Ao observar os cuidados dele com o neném, a mulher decidiu que era a hora de revelar o segredo que guardava, o motivo de suas saídas diárias: iria buscar Vicente, seu primogênito, que sobrevivera à violência do pai. Ela decide que podem recomeçar e serem uma família novamente.
Assim como Dalva, diversas mulheres no Brasil são vítimas de violência praticada pelos seus parceiros. De acordo com a pesquisa “Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil”, realizada pela Datafolha e publicada em 2025, 40,7% das mulheres com 16 anos ou mais já sofreram algum tipo de violência pelos parceiros ou ex -namorados. Em 57% dos casos, as agressões ocorreram dentro de casa.
Dados como esses são importantes para compreendermos a realidade brasileira. De maneira similar à protagonista de Tudo é Rio, muitas das vítimas escolhem não denunciar: de acordo com a pesquisa, somente 25,7% procuraram ajuda de órgão oficiais. Das que não buscaram ajuda, 14% não acreditavam que a polícia pudesse oferecer solução, enquanto 13,9% tinham medo das represálias. Mulheres como Dalva não estão e não ficarão sozinhas – Se você passa por alguma violência e necessita de ajuda, entre em contato com a Central de Atendimento à Mulher pelo Disque 180 ou Whatsapp no número (61) 9610-0180.

Infográfico produzido a partir dos resultados da 5ª edição da pesquisa. Reprodução: Fórum Brasileiro de Segurança Pública Título original: Tudo é Rio
Gênero: Ficção
Recomendação de leitura: 16 anos (A16)
Justificativa: A obra contém cenas de violência doméstica e violência psicológica, podendo causar gatilhos
Por: Maria Vital
*Este texto integra a mobilização do Ariadnes nos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres que começaram 25 de novembro, Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, e vão até o dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos.
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Por que novelas sempre punem mulheres que praticam aborto?

Rita (Nanda Costa) é força, resistência e luta por um direito que nunca deveria ser negado em Segunda Chamada. Foto: Divulgação. Telenovelas sempre fizeram parte do imaginário brasileiro desde a chegada da TV e, com sua virada realista, passaram a trazer situações cotidianas que refletem as experiências da sociedade e aproximam o telespectador.. Entretanto, muitos temas ainda são considerados delicados e geralmente são ignorados ou tratados de forma velada, frequentemente associados ao crime, como é o caso do aborto.
Atualmente, o aborto é considerado crime no Código Penal brasileiro, com exceções em casos específicos: risco de vida para a gestante, gravidez resultante de estupro ou anencefalia fetal. Uma ação no STF discute a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, e já recebeu votos favoráveis dos ministros Rosa Weber e Luís Roberto Barroso. O julgamento foi retomado recentemente, mas está suspenso após pedido de destaque do ministro Gilmar Mendes, que pediu análise no plenário físico. A descriminalização, portanto, refere-se ao debate sobre deixar de considerar crime a interrupção voluntária da gravidez, ou deixar de criminalizar mulheres que abortam.
Apesar de telenovelas abordarem temas como gravidez na adolescência, ainda é possível identificar fortes traços conservadores. Em Três Graças, por exemplo, a jovem Joélly (Alana Cabral) engravida na adolescência e, mesmo que pela lei ela não pudesse optar pela interrupção da gestação, a trama não abre espaço para discutir o assunto. Em diálogo com a amiga Kellen (Luiza Rosa), quando questionada sobre seu desejo de ser mãe, a palavra “aborto” sequer é mencionada. Essa ausência evidencia como a telenovela brasileira assume uma postura tradicional em relação à maternidade e aos direitos reprodutivos, além de divergir da realidade do país, onde mulheres, de fato, realizam abortos.
Além disso, quando o tema surge, aparece sempre pelo ponto de vista de Raul (Paulo Mendes), que tenta manipular Joélly para que realize um aborto mesmo contra sua vontade, apesar de ela afirmar repetidas vezes que não quer interromper a gestação. O mesmo padrão se deu quinze anos antes na história de sua mãe, Gerluce (Sophie Charlotte): mantida em cárcere privado e coagida a ter relações com Jorginho Ninja (Juliano Cazarré), ela engravida e também sofre tentativa de manipulação para abortar. Anos depois, a trama reforça a figura masculina que retorna “para pagar de bom pai”, apesar das violências que cometeu.
Essa é a mesma novela que consegue trazer o enredo de uma vilã que trafica crianças, mas não consegue colocar a pauta do aborto sem que seja de forma extremamente violenta e protagonizada por um homem.
Ainda assim, algumas novelas já tocaram no tema do aborto. Em A Dona do Pedaço (2019), o assunto aparece dentro do padrão recorrente: mulheres que abortam acabam morrendo, reforçando o medo em torno do procedimento, consequência direta da clandestinidade. A trama conta a história de Edilene (Cynthia Senek), jovem empregada e filha do motorista da rica família Guedes. Após ceder ao interesse do patrão, Otávio (José de Abreu), engravida e, pressionada, é forçada a realizar um aborto clandestino que resulta em sua morte, mostrada na novela com a personagem sangrando até morrer nos braços do pai.
Nesse mesmo ano, a Globo estreou um novo projeto Segunda Chamada, que apesar de ser uma série segue essa mesma linha tratada nas novelas. Rita (Nanda Costa), uma mãe de três filhos, aguardava na fila do SUS há muito tempo para realizar o procedimento de laqueadura e evitar novas gestações. É importante pontuar que a personagem tinha um problema de saúde que a impedia de usar anticoncepcional.
Quando ela finalmente consegue o direito de realizar a operação, descobre que não poderia fazer a ligadura das trompas porque estava grávida do quarto filho. Ela então decide realizar um aborto clandestino e sofre sequelas graves. Além disso, tem grande receio de procurar ajuda médica e ser denunciada; entretanto, é convencida pelos professores do lugar onde estuda.
Mesmo com a ajuda médica, ela infelizmente não resiste e morre.
Mais recentemente, a novela Vai na Fé colocou o assunto em pauta também durante uma aula de Lumiar (Carolina Dieckmann), professora de Direito em uma universidade. Uma de suas alunas, Alice (Laiza Santos), pediu ajuda à professora para socorrer uma amiga que sofreu um abuso, teve seu direito de realizar o aborto negado e acabou recorrendo ao clandestino. A vítima foi denunciada e presa. Dentro desse contexto, uma das personagens principais da trama, que fazia parte do núcleo evangélico, Jennifer (Bella Campos), se mostra contra a prática do aborto e explica que, se a mãe dela tivesse realizado o procedimento, ela não teria nascido. É importante ressaltar que sua mãe foi vítima de abuso e que Jennifer é fruto do estupro cometido por Theo (Emilio Dantas) contra Sol (Sheron Menezzes).
O UOL, por meio do bloco Notícias da TV, uma das principais fontes dessa crítica, destaca que personagens que abortam quase sempre são construídas sob estereótipos de mulheres pobres, desesperadas e tratadas como criminosas. Não por acaso, uma das poucas exceções, Nana (Fabiula Nascimento), da novela Bom Sucesso (2019), aborda o tema de forma mais complexa. Mulher rica e executiva, Nana teria condições de criar o filho ou realizar o procedimento em segurança no exterior. Mesmo assim, sua possível decisão é tratada superficialmente, e ela acaba perdendo o bebê por causas naturais. Assim, o tema permanece velado e estigmatizado.
Outra produção da TV Globo que abordou o tema foi Malhação: Toda Forma de Amar (2019–2020), em que a médica Lígia (Paloma Duarte) socorre uma jovem que havia realizado um aborto clandestino em condições precárias. Considerando que Malhação sempre teve como público-alvo adolescentes, a narrativa reforça uma lógica de terror e criminalização do aborto, criando medo e ampliando o tabu desde a programação juvenil até a adulta.
Também merece destaque Topíssima, novela da Record em que telespectadores protestaram na porta dos estúdios contra a cena de aborto e a morte da personagem Jandira. Moradora de comunidade e grávida de um golpista, Jandira recorre ao aborto clandestino e morre na clínica, repetindo o padrão trágico aplicado às personagens que abortam.
A partir de bell hooks, compreendemos como discutir questões do corpo feminino envolve analisar o impacto histórico e social da autonomia sexual. Ela evidencia como o acesso a métodos contraceptivos foi fundamental para que mulheres pudessem viver relações sem o medo constante da punição que, muitas vezes, vinha na forma de uma gravidez indesejada, colocando suas vidas em risco diante da clandestinidade do aborto. Para hooks, educação sexual e autonomia corporal são etapas fundamentais antes mesmo de se chegar ao debate sobre aborto.
As histórias dessas personagens reforçam a importância de uma transformação dentro das telenovelas brasileiras para que realidades como essas possam ser retratadas de forma verdadeira e coerente. Apesar de duras, fazem parte do cotidiano do país, onde estimativas indicam a ocorrência de entre 500 mil e 1 milhão de abortos clandestinos por ano. O aborto é uma questão de saúde pública — e a ficção, como espelho da sociedade, precisa tratá-lo como tal. Mulheres são constantemente violentadas e sempre punidas pela violência, mesmo que sejam as vítimas; essa é a realidade da sociedade e das telenovelas brasileiras.
Se você passa por alguma violência e necessita de ajuda, entre em contato com a Central de Atendimento à Mulher pelo Disque 180 ou WhatsApp no número (61) 9610-0180.
Referências:
Por Marcela Pauline
*Este texto integra a mobilização do Ariadnes nos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres que começaram 25 de novembro, Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, e vão até o dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos.
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A força dos relatos testemunhais contra as estruturas de violência em ‘Ela Disse’

As jornalistas Jodi Kantor e Megan Twohey foram premiadas com um Pulitzer de Serviço Público em 2018. Foto: Divulgação Alerta de gatilho: Esse texto contém descrições de relatos de abuso sexual
Em 2017, uma série de manifestações online tomou conta do antigo Twitter. Mulheres de diferentes origens publicaram seus relatos de abuso sexual com a hashtag “Me Too”, fazendo referência ao movimento fundado pela ativista Tarana Burke em 2006 para combater os crescentes casos de violência sexual nas escolas. Traduzido para o português significa “Eu também”.
A escolha dos termos não é à toa: significa evidenciar a rede de abusos de que as mulheres são constantemente vítimas, e o silêncio que fortalece essa estrutura. A onda de hashtags tomou uma forma maior: se transformou em um movimento consolidado, presente em diferentes países, para combater violências sexuais a partir da coleta de relatos, entendendo que as vozes das vítimas jamais podem ser caladas.
Mas isso não aconteceu da noite para o dia. A participação de diferentes camadas da sociedade foi necessária, sobretudo das mulheres. Trabalhadoras, mães e até atrizes de Hollywood tiveram papel fundamental na formação do Me Too. Entre elas estavam as repórteres Jodi Kantor e Megan Twohey, que fizeram um importante furo de reportagem sobre as denúncias de abuso sexual cometidos por Harvey Weinstein, então produtor de cinema estadunidense.
Com a manchete “Harvey Weinstein pagou durante décadas para suas acusadoras de abuso sexual”, a reportagem recolhia denúncias de diferentes mulheres que relatavam as condutas sexuais criminosas de Weinstein contra elas, desde funcionárias de equipe até atrizes escaladas para seus filmes. Ao todo, houve mais de 80 denúncias públicas contra Weinstein e um total de 16 acusações judiciais. Em 2023, o ex-produtor foi condenado a uma pena de 16 anos em Los Angeles por conta do acúmulo de acusações de estupro.
O Histórico de violências cometidas pelo produtor
Em 1979, Harvey e seu irmão Bob Weinstein fundaram a Miramax Films, uma das maiores produtoras independentes do mundo. Vinte seis anos depois, eles deixaram a Miramax e deram início à The Weinstein Company. Em ambas as empresas, Weinstein participou da produção e distribuição de grandes sucessos, como Pulp Fiction, Shakespeare apaixonado e Django Livre. Com atuação em Hollywood, no auge de sua carreira, Weinstein era dono de uma fortuna bilionária de aproximadamente 240 milhões de dólares.
A relação de trabalho entre o produtor e as atrizes e funcionárias implicava uma hierarquia de poder. Weinstein poderia atuar decisivamente na carreira de atrizes e trabalhadoras da área, que sentiam que poderiam perder cargos e papéis importantes se denunciassem o produtor por suas atitudes abusivas se não cedessem a elas: “Não houve nenhuma menção explícita de que para ser a estrela de um daqueles filmes eu teria que dormir com ele. Mas estava subentendido”, relata a atriz Heather Graham sobre a vez em que Weinstein tentou forçá-la a fazer sexo.
Muitas atrizes hesitaram em ceder entrevistas para Jodi e Megan, entre elas, Gwyneth Paltrow. A atriz exerceu um papel importante na acusação contra Weinstein. De início, Gwyneth temeu denunciá-lo pois ele teve influência na sua carreira como artista, principalmente na conquista do papel em Shakespeare Apaixonado, que concedeu à atriz um Oscar. Após um tempo, ela revelou que ele a tocou sem seu consentimento e sugeriu que fizesse massagens nele. Ela se sentiu constrangida e horrorizada, principalmente por ser tão nova: à época, Gwyneth tinha 22 anos e Weinstein, 44.
A atriz não foi corajosa apenas por revelar as denúncias ao The New York Times, mas também por incentivar que outras mulheres expusessem os abusos que sofreram para conseguir justiça. Com isso, outras atrizes de Hollywood relataram casos parecidos: Weinstein as convidava para seu quarto de hotel para “discutir sobre assuntos de trabalho”, muitas vezes de roupão, sem nada por baixo. Em seguida, fazia insinuações sexuais e pedia insistentemente para lhe fazerem massagens. Nessas repetidas ocasiões, aconteceram diferentes abusos e assédio sexuais, incluindo estupros.
No processo da apuração, era preciso uma variedade de vozes para relatar. No entanto, a hesitação das fontes poderia se tornar um problema. Mesmo com as dificuldades, as repórteres incentivaram que as fontes dessem seus relatos para que isso não acontecesse com outras pessoas. Durante o processo de apuração, em contato com várias fontes, Jodi e Megan conseguiram criar uma rede que se habilitou a relatar, o que incluiu um conjunto de mulheres para denunciar Weinstein, como Angelina Jolie, Léa Seydoux e Ashley Judd. A casa de Gwyneth Paltrow serviu de ponto de encontro para discutir sobre os acontecimentos e gerar apoio às vítimas das violências de Weinstein.
O intenso e complexo trabalho de apuração das repórteres do NYT
Diante de tantas acusações, as repórteres Jodi e Megan tiveram um extenso trabalho a fazer. A investigação começara a partir de um tweet da atriz Rose McGowan em que ela relatava ter sido vítima de um estupro de um grande produtor de cinema, e nada havia sido feito. Após esse primeiro passo, muitos outros relatos foram encontrados durante a apuração das jornalistas. Algumas das mulheres vítimas de Weinstein tinham medo de denunciá-lo e sofrerem judicialmente, já que o produtor poderia processá-las por difamação ou havia obrigado-as ao silêncio por meio de indenizações em acordos judiciais sigilosos.
Mesmo em meio às complexidades e dificuldades da apuração, Jodi e Megan entendiam a importância de publicar uma matéria como essa no NYT. A cobertura começou em 2016 e se estendeu até 2019, e tem rendido até os dias atuais frutos importantes na luta contra o silenciamento das vítimas de abuso sexual. Entre elas, a demissão de Harvey da Weinstein Company em 2017 e sua prisão em 2018. O impacto da publicação atravessou fronteiras, fazendo com que o mundo conhecesse as acusações contra ele e inspirasse mulheres a contarem suas histórias.
Em 2019, a dupla se juntou novamente para escrever, desta vez, um livro-reportagem. Intitulado “Ela disse”, o livro retrata os bastidores da pesquisa, produção e publicação da reportagem que expora os casos de violência sexual envolvendo Weinstein, além de Donald Trump e Brett Kavanaugh, juiz da Suprema Corte dos EUA. As repórteres realizaram um trabalho importante em meio ao cenário global de violências contra a mulher. Segundo a ONU, uma a cada três mulheres já foram vítimas de violência sexual ou física por parceiros ou pessoas desconhecidas. Esse dado demonstra que 840 milhões de mulheres no mundo todo já foram vítimas. Diante desse cenário, a urgência de ações de combate se tornam ainda maiores, e o jornalismo pode ser um aliado, como evidenciado no trabalho de Jodi e Megan.
O livro-reportagem demonstra o cuidado na apuração, respeitando o contexto de vida de cada vítima e a escolha de falar ou não. Ainda assim, as repórteres entendiam a importância de coletar uma série de relatos diferentes para publicar a matéria. Isso porque, frequentemente, mulheres são questionadas ao relatarem casos de abuso e assédio sexual, mesmo que esses acontecimentos sejam cada vez mais constantes. Normalmente, esse comportamento faz com que elas se sintam inseguras em denunciar, e não o fazem, principalmente por conta da impunidade aos agressores.
A falta de justiça em casos como esse contribui para impedir o combate devido ao problema, fazendo com que os casos de violência sejam cada vez mais frequentes. Mesmo em meio às dificuldades e obstáculos na coleta de relatos, o livro frisa a importância de fazê-lo para quebrar as correntes de silêncio e expor agressores. A partir do maior número de relatos coletados, uma rede coletiva de mulheres foi formada a em movimentos como o “MeToo” e a colaboração para a publicação da matéria do The New York Times. Os relatos coletivos são capazes, também, de formar redes de apoio para mulheres vítimas de violência, trazendo um maior acolhimento para poder lidar com o trauma.
Ela Disse é um importante livro-reportagem que traz discussões para compreender as etapas do jornalismo investigativo junto com seus desafios. Jodi e Megan demonstram as complexidades jurídicas e factuais de uma apuração como essa, o que poderia causar possíveis riscos às vítimas. No livro, as repórteres relatam que as vítimas poderiam ser acusadas de difamação e sofrerem danos judiciais. O medo de relatar era frequente por parte das mulheres, que tinham medo de terem suas palavras descredibilizadas, como acontece com frequência nesse tipo de caso. Mesmo com os relatos, as jornalistas precisavam fazer uma apuração intensiva para checar as informações ditas a partir de documentos, muitas vezes, inacessíveis. Para além dessas dificuldades, Jodi e Megan também foram perseguidas por uma equipe de detetives contratada por Weinstein, que tentava sabotar a realização da matéria.
Ela Disse é uma obra que evidencia a força dos relatos testemunhais e a importância de cumprir a função de ampliar as vozes das vítimas a partir da prática jornalística. Com uma perspectiva de gênero, as autoras trazem discussões importantes sobre os papéis de gênero na sociedade e as desigualdades que eles geram. É um livro essencial para a formação de jornalistas em diferentes áreas.
Título original: She said – The true story of the Weinstein Scandal
Gênero: Não ficção, livro-reportagem
Número de páginas: 320
Editora: Penguin Press
Tradução: Companhia das Letras
Recomendação de leitura: A partir dos 16 anos
Justificativa: Relatos de abusos sexuais explícitos, violência e desigualdade socialPor Rafaella Aparecida
*Este texto integra a mobilização do Ariadnes nos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres que começaram ontem, 25 de novembro, Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, e vão até o dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos.
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“Olhos d’água” e a violência na literatura de Conceição Evaristo
A obra ficcional Olhos d’água (2014), de Conceição Evaristo, é uma coleção de contos com enfoque na população afro-brasileira, abordando a forma como a pobreza e a violência rodeiam esse grupo desde sua chegada ao mundo. Neles, Conceição nos apresenta um grande número de mulheres que são faces de diversas brasileiras acometidas pelas exclusões e desigualdades. Entre mães, filhas, avós e amantes, a autora apresenta Ana Davenga, Duzu-Querença, Natalina, Luamanda, Cida, Zaíta, Maíta, Maria e outras diversas mulheres, todas acometidas pela dor e vulnerabilidade, postas nesse mundo sofrido e obrigadas a celebrar a vida mesmo diante das violências, mortes e reveses.
Conceição Evaristo, professora universitária, mulher negra, mãe e escritora, nasceu em 1946 na cidade de Belo Horizonte, cursou Letras no Rio de Janeiro e é mestre e doutora na área de literatura. Com uma escrita sensível, explora a violência e a exclusão social atribuídas, principalmente, às mulheres negras. Em Olhos d’água, ela traz o costumeiro tom terno de sua literatura, trazendo uma reflexão profunda sobre temas graves. As personagens simbolizam diferentes identidades, desenvolvendo as ficções a partir da vivências dessas faces para além da questão do gênero, mas permeando a questão racial e de classe social. Dessa forma, percorremos um dos contos que narra a história de uma dessas mulheres vítimas de violências em suas diferentes formas de manifestação.

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil Duzu-Querença
Nesse conto, o terceiro da coleção, somos apresentados às personagens Duzu e Querença, evidenciando já no título se tratar da perspectiva de duas mulheres, ambas negras. Um narrador onisciente inicia anunciando a velha Duzu, uma mulher negra moradora de rua, com as unhas sujas, que gera medo a quem caminha pelas calçadas. Ferida pelo desespero, pela fome e pelo medo, o narrador começa a exposição do passado dessa senhora e os acontecimentos que a levaram até ali.
Quando criança, Duzu foi levada à capital do Rio de Janeiro acompanhada dos pais, com a promessa de uma boa casa, um bom emprego e um futuro de estudos pela frente. Vinda do interior, “era caprichosa, com cabeça para leitura, possuidora de muito saber e sorte”. Zé Nogueira, pescador e pai de Duzu, estava em busca de um novo ofício, na tentativa de proporcionar boas condições de vida para a filha e para a mulher. Com uma família rodeada de pobreza e discriminação racial, além de pais sem condições financeiras para criá-la, Duzu foi deixada com Dona Esmeraldina, proprietária de uma casa que abrigava muitas meninas, trocando trabalhos de limpeza por moradia e comida. Sem seu conhecimento – e sem esclarecimento ao leitor se os pais detinham essa informação –, Duzu passou a morar em um prostíbulo.
Conforme crescia, a criança aos poucos se viu diante de cenas de sexo entre homens e mulheres, sendo inserida em um contexto onde ela era molestada por homens desconhecidos e paga para manter o silêncio. Exposta a essas situações diversas vezes, Duzu adentrou a vida adulta ainda na infância, sem ter conhecimento do que a rodeava e o que tais situações significavam. Os sentimentos, pensamentos e ações da personagem chegam ao leitor através do narrador, de forma a nunca nos deixar saber o que ela realmente pensa e como realmente se sente. Nessas situações de abuso, o narrador conta a história de forma a parecer que Duzu era conivente com tais ações, como se gostasse de determinadas situações. Ao mesmo tempo, deixa claro a falta de maturidade dela e como não parecia saber o significado do que lhe acontecia. Quando ela é estuprada por um desses homens e o relato do abuso chega aos ouvidos da dona do prostíbulo, Dona Esmeraldina apresenta duas “opções”: trabalhar como prostituta para ter casa e comida ou ir embora. Sem rede de apoio e abandonada pelos pais, Duzu obtém um quarto próprio para receber clientes e fica. Em nenhum momento o acontecimento é reconhecido como um estupro.
O Brasil ocupa o segundo lugar no ranking mundial de exploração sexual de crianças e adolescentes, crime previsto no Código Penal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Segundo o Instituto Liberta, a cada hora três crianças são abusadas no Brasil e cerca de 51% têm entre 1 a 5 anos de idade. Todos os anos, 500 mil crianças e adolescentes são explorados sexualmente no país e apenas cerca de 7,5% dos dados são denunciados às autoridades. Entretanto, foi apenas em 2025 que entrou em análise um projeto de lei (PL 2.927/2025) que tipifica como crime o ato de submeter, induzir ou atrair à prostituição alguém que não possa oferecer resistência. O déficit de punições como essa, além da negligência e fiscalização do Estado em relação a políticas já existentes, tornam casos como o de Duzu próximos a realidade brasileira.
Com a dominação masculina se tornando rotina, Duzu passa a viver os dias com homens violentando seu corpo. Abusos e estupros se tornam o cotidiano e, mesmo ao sair do prostíbulo de Dona Esmeraldina, sem ter para onde ir, percorre os bordéis da região sem conseguir sair desse ciclo, levando sua profissão para onde vai.“Acostumou-se aos gritos das mulheres apanhando dos homens, ao sangue das mulheres assassinadas. Acostumou-se às pancadas dos cafetões, aos mandos e desmandos das cafetinas. Habituou-se à morte como uma forma de vida.” Conceição Evaristo
Ao envelhecer, sem demandas do antigo trabalho e cansada, Duzu passa a morar na rua, sem tanto contato com seus nove filhos e diversos netos. Ela se mostra uma idosa feliz, delirante e fantasiosa. Nas últimas páginas do conto, parece reviver momentos onde a infantilidade e a inocência são permitidas, fase que lhe foi tirada na infância. Sem esclarecimento, morre nas ruas, fantasiada para o carnaval com restos de roupas. Morre animada por uma época onde “mesmo com toda dignidade ultrajada, mesmo que matassem os seus, mesmo com a fome cantando no estômago de todos, com o frio rachando a pele de muitos, com a doença comendo o corpo, com o desespero diante daquele viver-morrer, por maior que fosse a dor, era proibido o sofrer”. Imersa na fantasia, ela é assassinada.
A jovem negra Menina Querença é apresentada no fim do conto, ao passo em que se recorda da avó, Duzu, outra mulher negra. Com um nome que simboliza o ato de querer a alguém ou alguma coisa o afeto, Querença relembra o passado com carinho em um tempo onde sua avó vivia seus últimos anos, entre sonhos e delírios. Conhecida por ser inteligente, empática, com um futuro brilhante, lembra a avó quando menina. Ajuda as crianças mais novas da favela, participa do grupo de jovens da Associação de Moradores e do grêmio da escola. Ainda inserida em um contexto de desigualdade, pobreza e exclusão social, sonha, assim como Duzu, em continuar estudando. Em paralelo com nossa realidade, apenas 14,9% das mulheres negras acima de 25 anos concluíram o ensino superior, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De acordo com o instituto, apenas 56% das pessoas pretas no Brasil concluíram o ensino básico. Duzu faz parte dessa porcentagem, tendo os estudos interrompidos em tenra idade, e o medo que perpassa sua família é que, para além de seus filhos, seus netos também se tornem uma estatística.
Ao saber da morte de sua avó, voltando da escola, a neta relembra a história de sua família. Relembra de quando sua avó ensinou a ela a brincadeira das asas. Lembra de seus sonhos, de como deseja mantê-los vivos e da necessidade de reinventar a vida. Olha para o corpo fantasiado de Duzu e lamenta a solidão da avó desde o momento em que foi posta no mundo, enquanto visualiza suas semelhanças. E Conceição Evaristo nos faz acompanhar a esperança de uma família que, gerada através da exploração sexual contra uma menina cheia de sonhos, fantasia sobre sair de um ciclo vicioso.Serviço:
Título original: Olhos d’água
Gênero: Ficção
Recomendação de leitura: acima de 17 anos
Justificativa: Abordagem de temas complexos como pobreza, racismo, violência e desigualdade social.*Este texto integra a mobilização do Ariadnes nos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres que começaram 25 de novembro, Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, e vão até o dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos.
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Quem tem pena de Jorginho Ninja?

Jorginho Ninja pede perdão a Gerluce: a novela convida não apenas a personagem, mas também nós, em casa, a absolvermos o violador. Foto: Divulgação. Jorginho Ninja acabou de sair da cadeia. Preso e com uma doença incurável, se converteu a uma denominação evangélica e busca duas coisas depois de cumprir pena: conhecer a filha que havia pedido para a namorada abortar; e obter o perdão da ex-namorada, menina que ele manteve em cárcere privado, num relacionamento abusivo que a afastou de amigos, família e rede de apoio.
Essa é a trama de Juliano Cazarré em Três Graças, novela em exibição às 21h na Globo. À época chefe do crime organizado na comunidade da Chacrinha, ele foi o homem que feriu Gerluce (Sophie Charlotte), causando um trauma tão profundo e duradouro que a mulher reagiu com terror a um toque inesperado e indesejado do homem; tão brutal que ela se recusa a revelar à filha o nome do progenitor biológico de Joélly.
Capítulo após capítulo temos visto o novo Jorginho. Penitente, arrependido, contrito, respeitando o tempo de Gerluce, mas esperançoso de construir uma relação com Joélly, a adolescente cuja criação não contou com participação ou interesse algum dele por 15 anos. Nas apariçõs de Jorginho, há versículos bíblicos e música de louvor. Ele mora na igreja! A trilha sonora é comovente, as conversas com o pastor são honestas. Ele até deu um apavoro no inútil Raul, pai do filho que Joélly espera, fazendo um gesto do bem.
Notícias davam conta de que a trama de Jorginho e Gerluce seria de um estupro, mas a novela resolveu amenizá-la. Amenizar trocando estupro por cárcere privado? Como é pra gente imaginar que esse bebê foi concebido, numa relação em que a menina foi praticamente sequestrada? Qual o consentimento possível de uma menina presa? Realmente esperam que a gente diferencie o que Jorginho fez de um estupro?
Mais que isso: por que a trama foi suavizada? Pelo horário? Duvido que seja a única razão. Me parece que a emissora resolveu atenuar o crime de Jorginho porque seria muito difícil para Gerluce perdoar o homem que a estuprou e para Joélly aceitá-lo. Seria muito difícil para nós, espectadoras, construirmos qualquer empatia por aquele homem.
E a trama, claramente, deseja/espera que a gente dê outra chance a Jorginho; se compadeça dele, torça por ele (será que vem por aí uma cura milagrosa?). Gerluce que engula seu trauma, que seja forçada a aceitar esse abusador pelas ruas, pela comunidade, em sua vida. O sofrimento dela tem muito, muito menos valor que o sofrimento e o arrependimento dele.
Mas inadvertidamente, trocar estupro por cárcere privado de uma menina de 15 anos não ameniza NADA. Nos convida a preencher as lacunas dessa narrativa com histórias que sabemos muito reais, cotidianas, corriqueiras. É de uma sordidez extrema que estejamos sendo convidadas a sentir pena de Jorginho ao mesmo tempo em que a mídia exibe diuturnamente crimes terríveis; e enquanto a mídia continua a tratar de modo ambíguo, machista e, às vezes, misógino violências contra a mulher.
As inúmeras chances a Jorginho são um tapa em nossa cara; mas no fim das contas pouco diferem do modo como a sociedade e a mídia vêm os violadores e as violências que cometem contra nós.
Se você passa por alguma violência e necessita de ajuda, entre em contato com a Central de Atendimento à Mulher pelo Disque 180 ou WhatsApp no número (61) 9610-0180.Por Karina Gomes Barbosa
*Este texto integra a mobilização do Ariadnes nos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres que começaram 25 de novembro, Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, e vão até o dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos.
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O que Três Graças revela sobre a maternidade adolescente e a misoginia da sociedade

Joélly Maria, Gerluce Maria das Graças e Lígia Maria compõem o núcleo familiar de mães solo da novela Três Graças. Foto: Divulgação Após um final, diga-se de passagem, bem decepcionante do remake de Vale Tudo, a Globo possui um diamante a ser lapidado em suas mãos com a nova produção de Aguinaldo Silva, Três Graças, que tem a premissa de contar a história de três mulheres da mesma família — avó, mãe e filha, respectivamente — que ficaram grávidas na adolescência. Gerluce Maria das Graças integra uma família de mães solo: é filha de Lígia Maria e mãe de Joélly Maria, que, no início da trama, descobre uma gravidez aos 15 anos e, assim como a mãe e a avó, será uma mulher que criará sozinha sua criança.
Novamente retomando a antecessora de Três Graças, é muito bom ver novelas voltando a pautar assuntos sérios — como a gravidez na adolescência — com a importância que o tema exige, além de um encadeamento lógico, sem recorrer constantemente a publicidades. O autor teve a ideia da obra ao se deparar, em um posto de saúde, com diversas jovens grávidas e sozinhas.
A cena presenciada pelo autor que desencadeou a história é muito comum, já que, segundo o Centro Internacional de Equidade em Saúde da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), uma em cada 23 adolescentes brasileiras entre 15 e 19 anos se torna mãe a cada ano. Além disso, a gestação precoce possui forte relação com privação social, evasão escolar e ausência de políticas públicas eficazes, além de oferecer inúmeros riscos à gestante. Também é considerada uma gravidez de risco por ter, por exemplo, mais chances de pré-eclâmpsia, um distúrbio que aumenta a pressão arterial e força o parto prematuro; complicações no parto; infecção urinária ou vaginal da gestante. Além disso, quando a grávida tem menos de 45 quilos, pode haver impactos no peso do bebê. Por fim, levando em consideração o psicológico, existem chances muito grandes de a gestante desenvolver depressão pós-parto, já que ainda muito novas elas são inseridas num contexto de obrigações da maternidade que podem ser cruéis.
Algumas pautas que já eram historicamente tratadas em novelas da Globo acabaram sendo colocadas de lado nos últimos tempos, e aquilo que vinha se tornando um progresso regrediu de várias formas, de acordo com recentes decisões tomadas pela emissora. A consequência disso foi justamente a perda de espaço para assuntos como gravidez na adolescência, trazida de volta agora com o dramaturgo.
Com essa ausência, vêm a desinformação e o desconhecimento da realidade. Logo no anúncio do elenco de Três Graças, diversos comentários eram: “Você tá querendo que eu acredite que essa mulher vai ser avó?”. Algumas dessas reações se referem a Gerluce, personagem de Sophie Charlotte.

Reprodução / X-Twitter As novelas sempre foram mecanismos de extrema importância para a comunidade brasileira e importantes para a construção de nossa identidade. Trazer realidades vividas por grande parte da sociedade sempre foi uma premissa das obras; entretanto, o crescente conservadorismo no país tenta, de muitas formas, mascarar essas realidades.
A psicóloga perinatal Rafaela Schiavo, entrevistada pelo portal de notícias Terra, explica que “o tabu de falar com adolescentes sobre sexo e sexualidade pode aumentar os casos de gravidez na adolescência, sim. Precisamos que professores e escolas abram mais espaço para esse diálogo com os pais, para ensiná-los a conversar com os filhos”. Sem esse diálogo aberto, que pode muitas vezes ser debatido em novelas, as adolescentes ficam vulneráveis a desinformação, julgamentos e pressões sociais, o que muitas vezes dificulta o acesso a escolhas conscientes sobre sua própria sexualidade e maternidade.
Outros comentários em redes sociais evidenciam a misoginia que as mulheres enfrentam cotidianamente, especialmente durante a gravidez, ainda mais quando ocorre na adolescência.

Reprodução / X- Twitter Diante de uma cena construída de forma cuidadosa, que dá origem à premissa da novela, surgem falas como esta: “Não tem galantaria, deu porque quis”. Esse comentário escancara a misoginia, vinda de homens que se consideram sempre críticos de maneira justa, mas que nunca culpabilizam o pai — que, diga-se de passagem, não passa de um playboy inconsequente que frequentemente também se coloca no lugar de vítima.
A história da família brasileira nasce na família patriarcal, ainda hoje impregnada desse modelo. Vivemos em um país que, em 2022, tinha 49,1% dos lares brasileiros chefiados por mulheres, segundo o Censo Demográfico do IBGE. Esse dado representa um aumento significativo em relação a 2010, quando o percentual era de 38,7%, e mostra uma aproximação entre a proporção de chefes de família mulheres e homens, já que homens são “novos demais, não dão conta”, enquanto as mulheres, além de serem expostas a riscos evidentes à saúde e, muitas vezes, se encontrarem sozinhas, acabam assumindo responsabilidades que, na prática, não deveriam recair apenas sobre elas.
A história de Joélly Maria segue a proposta de uma telenovela de qualidade e é reflexo de uma realidade que ainda atinge muitas adolescentes brasileiras. Ignorá-la é fechar os olhos para questões sociais urgentes. A obra, logo no seu início, já mostra uma grande construção, espero que Aguinaldo não nos decepcione.
Serviço:
Título original: Três Graças
Onde assistir: Globoplay
Gênero: Telenovela
Classificação: 12 anos (A12)
Classificação da autora: 12 anos (A12)
Justificativa: Pode conter cenas, temas ou linguagens não recomendados para menores dessa idade, embora não contenha conteúdo extremamente explícito.*Este texto integra a mobilização do Ariadnes nos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres entre os dias 25 de novembro, Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, e o dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos.
Por Marcela Pauline
